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  • Mayombe

MEMÓRIAS

Nesse romance, as memórias se configuram em um tema importante, que atravessa o enredo, sobretudo nos relatos dos guerrilheiros, nos quais são desveladas as origens dos combatentes e os infortúnios causados pela exploração colonial. Abaixo temos o recorte de um trecho completo narrado por um dos personagens que através de suas memórias se remete a um fato histórico e a outras questões da configuração social de acordo com sua visão de mundo, o qual pode ser utilizado pelo professor de história ao discutir as referências históricas diretas na literatura e seus encaixes nas narrativas, por exemplo. Este relato precede a mais importante operação realizada pela tropa na floresta do Mayombe, quando se preparam para atacar uma base do exército colonialista.

 

Eu, O Narrador, Sou O Chefe De Operações.

Não durmo, nesta noite que não acaba. Sem Medo, a meu lado, também não dorme. Mas não posso falar com ele. Nunca pudemos conversar. Ele é um intelectual, eu um filho de camponês.

Nos Dembos, os homens viviam miseráveis no meio da riqueza. O café estava em toda a parte, abraçado às árvores. Mas roubavam-nos nos preços, o suor era pago por uns tostões sem valor. E as roças dos colonos cresciam, cresciam, atirando as nossas pequenas lavras para as terras mais pobres.

Por isso houve Março de 61(1). Eu era criança, mas participei nos ataques às roças dos colonos. Avançava com pedras, no meio de homens com catanas e alguns, raros, com canhangulos. Não podíamos olhar para trás: os kimbundos diziam que, se o fizéssemos, morreríamos.

As balas dos brancos eram água, diziam eles. Depois da independência renasceriam os que tinham caído em combate. Tudo mentira. Hoje vejo que era tudo mentira.

Massacramos os colonos, destruímos as roças, mesmo o dinheiro queimamos, proclamamos território livre. Éramos livres. Os brancos durante séculos massacraram-nos, porque não massacrá-los? Mas uma guerra não se faz só com ódio e o exército colonial recuperou o território, o território livre voltou a ser território ocupado.

Vim para o Congo e no MPLA aprendi a fazer a guerra, uma guerra com organização. Também aprendi a ler. Aprendi sobretudo que o que fizemos em 61, cortando cabeças de brancos, mestiços, assimilados e umbundus, era talvez justo nesse momento. Mas hoje não pode servir de orgulho para ninguém. Era uma necessidade histórica, como diz o Comissário Político. Percebo o sentido das palavras, ele tem razão, nisso ele tem razão.

Só não tem razão em estar do lado do Comandante, que é kikongo. Foram os kikongos que vieram mobilizar-nos, que trouxeram as palavras de ordem do Congo de avançar à toa, sem organização. Os kikongos queriam reconstituir o antigo reino do Congo. Mas esqueceram que os Dembos e Nambuangongo sempre foram

independentes do Congo. Pelo menos, a partir duma certa altura. Isso disseram-me os velhos dos Dembos e isso diz a história do MPLA. Porquê o Reino do Congo e não o Ndongo e não os Dembos?

Perdida a guerra de 62, os kikongos infiltraram-se no MPLA. O Sem Medo não. Ele é kikongo, mas nasceu em Luanda. O Sem Medo é um intelectual, é isso que complica as coisas.

Ele não dorme.

Não pode dormir. A sua Base está ocupada pelo inimigo. Foi ele que a construiu, foi ele que a impôs ao André, que a queria no exterior. É a sua Base. Por isso sofre. É uma derrota para ele. Sem Medo é um intelectual, o intelectual não pode suportar que o seu filho morra. Nós estamos habituados. Os nossos filhos morreram sob as bombas, sob a metralha, sob o chicote do capataz. Estamos habituados a ver os nossos filhos morrer. Ele não. A Base era o seu filho, criou-a contra todos. Contra nós mesmos, que queremos é voltar aos Dembos e a Nambuangongo, onde há verdadeiramente guerra popular. Ele acredita que a luta aqui é possível, que ela pode crescer. É o seu filho, está bem, é preciso compreender.

O Comissário diz que, se avançarmos a luta em Cabinda, as outras regiões estarão

aliviadas, porque o inimigo terá de dividir forças. É verdade. Por isso, luto aqui. Mas não por Cabinda, que não me interessa. Luto aqui para que a minha região tenha menos inimigos concentrados nela e assim possa ser livre.

Mas Sem Medo é um homem. Quando combate, tem o mesmo ódio ao inimigo que eu. As razões são diferentes, mas os gestos são os mesmos. Por isso o sigo no combate. O mal é ser um intelectual, é esse o mal: nunca poderá compreender o povo. Os seus filhos ou irmãos não morreram na guerra. Não, ele não pode compreender.

Ele não dorme.

Gostava de lhe explicar isto. Mas não sei como dizer. E ele não compreenderia. (PEPETELA, 1982, p. 145-147)

Outros trechos mostram diretamente as memórias na construção da trama através dos relatos dos combatentes, sobretudo por se tratar de um romance de caráter polifônico (com muitos narradores), conforme observado no quinto módulo. São memórias fundamentalmente ligadas aos nocivos efeitos da exploração colonial, reforçando ainda mais a necessidade de mobilização contra os opressores lusitanos e seus apoiadores. O relato abaixo mostra a visão de um combatente, chefe do depósito na cidade de Dolisie, a respeito do movimento e da guerra de libertação.

Eu, O Narrador, Sou O Chefe Do Depósito.

É a segunda noite que não vou dormir, por causa dos presos. Se adormecer, eles fugirão.

Fui combatente na Primeira Região, servi de guia aos grupos que do Congo entravam

em Angola ou saíam para o Congo. Fui para o interior de novo com o Esquadrão Kamy e, depois do fracasso, consegui voltar. Doente, fiquei a trabalhar no Depósito. Até hoje. A saúde não me permite estar permanentemente na guerra e tenho pena. Mas tomar conta do material de guerra também é fazer a revolução.

Lá em Quibaxe, eu já era homem e casado, quando começou a guerra. Camponês sem terra, trabalhava na roça dum colono. Entrei na guerra, sabendo que tudo o que fizesse para acabar com a exploração era correto. E tudo fiz. Mas não foi tão rápido como se imaginava. Os traidores impediram a luta de crescer. Traidores de todos os lados. É mentira dizer que são os kikongos ou os kimbundos ou os umbundos(2) ou os mulatos que são os traidores. Eu vi-os de todas as línguas e cores. Eu vi os nossos próprios patrícios que tinham roças quererem aproveitar para aumentar as roças. E alguns colaboraram com a Pide. (PEPETELA, 1982, p. 128-129)

Sugestão de atividade

Após os educandos terem lido todo o romance Mayombe, selecione e destaque todos os relatos narrados pelos personagens (quatorze no total) no enredo, e com base nesses recortes analise com os alunos os principais aspectos trazidos por essas memórias para a compreensão do tema da guerra anticolonial angolana.

Notas

(1) Referência ao massacre de colonos e trabalhadores no norte de Angola promovido pela União das Populações de Angola (UPA), movimento de luta pela libertação nacional liderado por Holden Roberto, no início da guerra de independência angolana.

(2) Idioma falado pelos ovimbundos, habitantes na região central Angola. No romance, Pepetela se refere a esse povo pela denominação de sua língua.

Referências

PEPETELA. Mayombe. São Paulo: Ática, 1982.

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