HISTÓRIA & LITERATURA
Angola e a luta anticolonial
A fermentação e o advento da independência
A independência da colônia de Angola contou com a articulação de fatores como a pesada exploração sobre as populações locais e o quadro da geopolítica mundial do pós-Segunda Guerra, onde é importante destacar a escolha dos movimentos de luta anticolonial em forjar uma identidade angolana no sentido de agrupar toda a população local em torno da luta contra o inimigo comum e fortalecer um sentimento nacional que suplantasse as diferentes nações existentes.
Assim como diversas outras regiões do continente africano, Angola foi um país criado a partir da violência colonial, que consequentemente enfrentou forte oposição dos povos locais. Tais conflitos, num ambiente de desarticulação das formações sociais anteriores à invasão dos europeus, concorreram para o surgimento de um novo país, de acordo com as particularidades de seu processo histórico. No que concerne aos efeitos da opressão colonial sobre os africanos, o historiador Marcelo Bittencourt fez a seguinte análise
...é possível afirmar que o estudo do colonialismo passou a contemplar a ideia de que o colonialismo resulta da proposta de exploração pensada pelas potências, das potencialidades do território em questão e das organizações sociais encontradas, além do grau de desenvolvimento do país colonizador. É preciso ter em consideração, no entanto, que todos esses diferentes fatores foram temperados pelo tempo, já que eles sofreram inúmeras alterações no decorrer do século XX. (BITTENCOURT, 2018, p. 119)
A exploração colonial sobre as populações locais teve forte caráter racista desde seu princípio, a se observar o intenso movimento de emigração de brancos portugueses para Angola, estimulado pela administração colonial, quando “nas primeiras quatro décadas do século XX a população branca aumentou de 9 mil para 44 mil indivíduos.” (HERNANDEZ, 2005, p. 569). De modo paralelo e integrado à política colonial discriminatória, o governo português implementou em 1926 um estatuto reforçando a estratificação social, com a separação entre os “civilizados” (brancos, mestiços e negros “assimilados”*) e os “indígenas”. O primeiro grupo era dotado de direitos civis, enquanto o segundo, formado por nativos não assimilados, não possuía qualquer direito perante a sociedade.
Diante desse contexto, o nível de insatisfação dos setores
explorados foi aumentando, à medida que inclusive a
separação no grupo dos “civilizados” ia ficando cada vez mais
evidente, com os brancos sendo privilegiados. As diferenças
raciais foram se somando às questões culturais (sujeitos que
professavam religiões não cristãs, por exemplo) e sociais ao
ponto de terras serem confiscadas em favor dos colonos
brancos.
É importante salientar que o sentimento de revolta contra o
poder colonial lusitano foi catalisado em grande medida
por uma camada instruída, originada na população local,
que ocupava cargos secundários na administração pública
e contava com estudantes formados na própria metrópole,
em Lisboa. Esse quadro nos auxilia na compreensão da gênese de um país configurado de modo diferente dos estados que existiram na região antes da invasão europeia.
Em Lisboa, estudantes africanos faziam sua formação técnica e política. Fundaram o Centro de Estudos Africanos para discutir os mais variados aspectos da vida no continente africano. Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Marcelino dos Santos, Viriato da Cruz, Mario de Andrade são alguns dos que passaram por Lisboa nos anos 40, e que, retornando para as colônias na década seguinte, iniciaram uma intensa agitação política em favor da independência. Essa camada de intelectuais acabou fundamentando a base social dos movimentos que, utilizando os instrumentos teóricos e práticos apreendidos do colonizador, lutaram pela independência nacional. (CONCEIÇÃO, 2016, p. 71)
Desse modo,
...as raízes mais diretas dos movimentos de libertação podem ser encontradas no início do século XX, quando a colonização estava sendo efetivada. Começou então a destruição da liderança dos chefes tradicionais com a imposição da administração colonial. Segundo Sósia Rabin, esta começou de fato em 1922, com a expropriação de terras e bens, com a imposição do imposto de propriedade (imposto de cubata), e com a imposição do trabalho forçado para os africanos. Nisto estaria
a origem das futuras revoltas contra Portugal. (CONCEIÇÃO, 2009, p. 41)
Os diversos segmentos de atuação profissional dos membros dos movimentos também foram essenciais para o acirramento das contestações anticoloniais, como no caso dos intelectuais ligados às atividades literárias, conforme observado nos módulos II e III. Reproduzo a seguir um trecho onde Elikia M’Bokolo descreve a formação dos movimentos políticos pró-independência em Angola e o início da atuação organizada dos literatos no processo.
Em Angola, a dominação colonial, conjugada com a ditadura salazarista, proibiu a formação legal de partidos políticos. Clandestinamente e por iniciativa do Partido Comunista Português, constituíram-se, em Luanda por volta de 1948, três organizações revolucionarias dirigidas por jovens intelectuais: a Comissão Federal Angolana do Partido Comunista Português, a Comissão de Luta das Juventudes contra o Imperialismo Colonial em Angola e a Angola Negra.
As mais significativas ações em meio urbano deveriam, portanto, ser atribuídas a própria iniciativa dos africanos locais. Em Angola, variados grupos muito ativos se haviam constituído entre as duas guerras, mantendo o seu poder de pressão apos 1945: a Liga Nacional Angolana e a ANANGOLA (Associação Regional dos Naturais de Angola), ambas particularmente influentes junto aos mestiços de Luanda, a primeira atuando sobretudo em favor das reformas econômicas e sociais, ao passo que a segunda privilegiava a ação cultural. Sob os auspícios da ANANGOLA em 1948, um jovem poeta, Viriato Francisco Clemente da Cruz, fundou um grupo literário cujos membros publicaram na revista Mensagem uma abundante poesia contestatória. Esta poesia dos musseques − nome atribuído aos bairros pobres de Luanda − deveria representar, de maneira durável, a forma privilegiada de critica social e de reivindicação nacionalista. (M’BOKOLO, 2010, p. 232)
A sequência das ações contra a metrópole desembocou na formação de dois grandes movimentos nacionais angolanos organizados em torno da luta pela independência do país, os quais foram o Movimento Pela Libertação de Angola (MPLA), em 1956, e a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA*), em 1954. Anos mais tarde, já no decorrer da guerra pela libertação nacional, surgiu a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA*), a partir de uma dissidência da FNLA.
Desses movimentos, o MPLA era o mais heterogêneo na composição de seus membros, agrupando sujeitos de diferentes raças e origens sociais e contando com grande participação de intelectuais em seu corpo dirigente. Conforme tratado nesse material didático, sobretudo nos módulos II e III, os escritores angolanos autores das obras analisadas (Pepetela e Luandino Vieira) participaram ativamente desse grupo político.
Em 1961 a guerra entre os movimentos nacionais angolanos e o
governo português foi oficialmente iniciada após algumas ações
dos grupos de libertação e violentas reações dos colonialistas.
Com o desenrolar dos confrontos, os nacionalistas angolanos
foram ganhando força ao passo que Portugal, de economia
debilitada, enfrentava graves crises em sua política interna,
culminando na derrocada de seu regime ditatorial através da Revolução dos Cravos em 1974, influenciada diretamente pela força dos diversos movimentos de libertação no continente africano. O recorte seguinte apresenta resumidamente esse processo, que desembocou na independência de Angola, proclamada em 1975.
Em 1959 e 1960, eclodiram os primeiros graves distúrbios, apos sobressaltos ocorridos no processo de emancipação do Congo belga, onde numerosos angolanos viviam na imigração ou no exílio. A brutal repressão traduziu-se por detenções em massa admiravelmente relatadas no belo conto de Luandino Vieira, A Verdadeira Vida de Domingo Xavier. A rebelião explodiu no ano de 1961, em muitas localidades: em Luanda, no dia 9 de fevereiro; no norte, junto a fronteira do Congo (Zaire), em 5 de marco, bem como na Baixa de Cassange (Kasanga), na mesma época. Os portugueses responderam com extrema violência e o resultado da repressão foi muito sangrento: de 30.000 a 50.000 mortos e de 150.000 a 200.000 angolanos, em sua maioria originários do noroeste (Kongo), foram obrigados a se exilar no Congo (Zaire), em alguns meses. Posteriormente a esta derrota, a frente militar estabilizou-se; ao passo que o exército português se enterrava na repressão de uma interminável guerrilha, com efeitos catastróficos tanto econômica quanto financeiramente. As divergências entre os movimentos nacionalistas aumentaram, chegando ao ponto de se tornarem evidentes. Entretanto, apesar do crescente apoio oferecido a Portugal pelos seus parceiros da OTAN, esta guerra, a imagem daquelas da Guine Bissau e de Moçambique, minaria a economia e a sociedade portuguesas e, por outro lado, provocaria um mal-estar politico que se manifestaria na “Revolução dos Cravos” (25 de abril de 1974). Esta última desbloquearia a situação. (M’BOKOLO, 2010, p. 232)
Com Portugal enfraquecido e sob novo governo, coube aos três grandes grupos políticos angolanos se relacionarem na condução do processo de independência de Angola. As divergências entre os movimentos ficou ainda mais acirrada, com o país sendo dividido em zonas de influência. FNLA e UNITA possuíam poderes mais localizados em zonas rurais e ligados mais fortemente às suas nações de origem – a primeira representando primordialmente os bacongos(1) e a segunda com os ovimbundos(2). O MPLA, com grande predominância entre os Mbundus(3), abrangia um espectro social mais amplo, conforme observado, e uma presença urbana mais consistente. Após muitos conflitos locais, foi proclamada a independência do país, mas ainda assim sem que houvesse convergência no tocante à condução política da nação unificada.
Foi somente em 15 de janeiro de 1975 que os acordos de Alvor, assinados pelos três movimentos e pelo governo português, estipularam a data da independência. Mas os desacordos ressurgiram muito rapidamente. De fevereiro a julho de 1975, a “batalha de Luanda”, vencida pelo MPLA, permitiu-lhe banir os seus rivais da capital. A independência foi proclamada na data prevista em meio a maior confusão: em Luanda ela coube ao MPLA, ao passo que em Huambo ela se realizou sob a direção da FNLA e da UNITA. A guerra civil sucedeu a guerra de libertação… Após uma série de sucessos militares (janeiro-março de 1976), o MPLA promoveu a entrada da República
Popular de Angola no seio da OUA* (11 de fevereiro de 1976), bem como a sua adesão a ONU (novembro de 1976). Entretanto, várias regiões ainda escapavam ao controle do poder central. (M’BOKOLO, 2010, p. 260)
A independência de Angola representou, dentre diversas outras
questões, uma importante mudança com o expurgo oficial de um
nocivo regime colonial – caso dos portugueses. No entanto,
cabe destacar que seus resultados principais estiveram longe de
atender de modo equilibrado e justo às demandas dos diversos
povos que viviam sob o território do país, num processo onde
“os movimentos de libertação basearam suas ideologias
em noções e valores dos próprios colonizadores”
(CONCEIÇÃO, 2016, p. 64).
O novo estado continuou mergulhado num ambiente divergente e conflituoso, reflexo da herança colonial, que desrespeitou as singulares nações habitantes da região e de modo violento definiu fronteiras, uma língua (portuguesa) como oficial e uma estrutura econômica à revelia dos interesses dos grupos sociais locais, contribuindo para as divisões internas no país independente, representadas pelos diferentes grupos políticos que reivindicavam sua parcela na condução dos rumos de Angola. A partir de então, o país passou por uma extensa e intermitente guerra civil, que só foi cessar em 2002.
Mapa atual de Angola
Fonte: https://espanol.mapsofworld.com/continentes/africa/mapa-de-angola/
Províncias de Angola
PARA SABER MAIS
O historiador Marcelo Bittencourt é um dos nomes mais respeitados nos estudos da história angolana. O professor e pesquisador possui uma extensa e qualificada produção a respeito do tema, com obras imprescindíveis para a compreensão da formação de Angola, sobretudo no que se refere às lutas pela independência.
Seguem algumas indicações de referências bibliográficas do autor:
LIVROS
BITTENCOURT, Marcelo. Dos Jornais às Armas. Trajectórias da Contestação Angolana. 1. ed. Lisboa: Vega,
1999. v. 1. 229p .
BITTENCOURT, Marcelo. "Estamos Juntos!" O MPLA e a luta anticolonial (1961-1974). Luanda: Kilombelombe,
2008. v. 2. 710p .
BITTENCOURT, Marcelo.; MARZANO, A. B. . História da África. 1. ed. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2013.
v. 1. 434p.
CAPÍTULOS DE LIVROS
BITTENCOURT, Marcelo. Leituras do Colonialismo. In: Nedilson Jorge. (Org.). História da África e relações com
o Brasil. 1ed.Brasília: FUNAG, 2018, v. 1, p. 107-133.
BITTENCOURT, Marcelo. As independências africanas: violência e diversidade. In: Nedilson Jorge. (Org.). História
da África e relações com o Brasil. 1ed.Brasília: FUNAG, 2018, v. 1, p. 135-158.
* Assimilados
-
Cidadãos nascidos em Angola que cumpriam determinados requisitos no sentido de se aproximarem culturalmente dos portugueses, tais como: saber ler, falar e escrever português; professar a mesma religião dos portugueses; manter padrões de vida semelhante ao dos europeus.
Tais determinações faziam parte do Estatuto do Indígena, legislação da ampla política racista e discriminatória aplicada pelo governo português.
* UNITA
-
A União Nacional pela Independência Total de Angola (UNITA), fundada em 1966, foi resultado das divergências no interior da FNLA. Tinha o apoio dos EUA e da África do Sul. Liderada por Jonas Savimbi, também educado por protestantes.
(CONCEIÇÃO, 2009, p. 43)
* FNLA
-
Em 10 de julho de 1954 foi fundada a União das Populações do Norte Angola (UPNA), que em 1958 transformou-se em União das Populações de Angola (UPA). Esta organização fundiu-se com o Partido Democrático dando origem à Frente
Nacional de Libertação de Angola (FNLA), em Março de 1962. A FNLA era declaradamente anticomunista, pró-ocidental e tribalista. Tinha o apoio da Zâmbia e do Zaire. E lutava com armas chinesas e Norte-americanas…
… Seu presidente era Holden Roberto, filho de um chefe tribal educado por protestantes. (CONCEIÇÃO, 2009, p. 42-43)
* MPLA
-
O Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA) foi fundado em dezembro de 1956 como resultado da ação de vários grupos. Entre eles o Centro de Estudos Africanos, o Clube dos Marítimos, o Movimento dos Intelectuais Nativos de Angola, a Associação Regional dos Indígenas de Angola, Movimento pela Independência de Angola (MIA), o Movimento de Independência Nacional do Norte de Angola (MINA) e o PLUA*. O MPLA era de tendência socialista, autoproclamado marxista, contava com o apoio da Guiné, do Congo, da URSS e de Cuba. Seus primeiros líderes foram Mário de Andrade e Viriato da Cruz. Em 1962, um congresso mudou a direção e a presidência passou a ser exercida por Agostinho Neto. (CONCEIÇÃO, 2009, p. 43)
* PLUA
-
Sigla do Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola, uma das organizações políticas que deram origem ao MPLA.
* OUA
-
Organização da Unidade Africana. Entidade formada pelos países independentes africanos objetivando, dentre outras questões, prestar auxílio mútuo contra ameaças à soberania nacional de seus membros.


Notas
(1) Uma das principais nações que habitavam o antigo reino do Congo. Concentram-se majoritariamente ao longo da costa atlântica angolana. Falam o idioma kikongo.
(2) Nação mais numerosa da população angolana. Ocupam do planalto central até a faixa costeira do país, abrangendo as províncias do Huambo, Bié e Benguela. Falam o idioma umbundo.
(3) Nação que se concentra especialmente na região de Luanda. Falam o idioma kimbundu.
Referências
BITTENCOURT, Marcelo. Leituras do Colonialismo. In: Nedilson Jorge. (Org.). História da África e relações com o Brasil. 1ed.Brasília: FUNAG, 2018, v. 1, p. 107-133.
CONCEIÇÃO, Juvenal de C. 40 anos de Angola: a construção de uma nação. In: CONCEIÇÃO, Juvenal de C.(Org). Reflexões sobre a África Contemporânea. Cruz das Almas: EDUFRB; Belo Horizonte: Fino Traço, 2016, v. 6, p. 61-73. (Coleção UNIAFRO).
_________________________. Revista Veja: Um olhar sobre a independência de Angola. 1a.. ed. São Paulo: Gandalf Editora, 2009. v. único.
HERNANDEZ, Leila Maria Gonçalves Leite. A África na sala de aula: visita à História Contemporânea. Editora Selo Negro. São Paulo, 2005.
VANSINA, Jan. A África equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros Estados. In.: NIANE, Djibril Tamsir (editor). História Geral da África, IV: África do século XII ao XVI. 2.ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010. 896 p.
VANSINA, Jan. O Reino do Congo e seus vizinhos. In.: OGOT, Bethwell Allan (editor). História Geral da África, V: África do século XVI ao XVIII. 2.ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010. 1208 p.
ISAACMAN, Allen; VANSINA, Jan. Iniciativas e resistência africanas na África central, 1880-1914. In.: BOAHEN, Albert Adu (editor). História Geral da África, VII: África sob dominação colonial, 1880-1935. 2.ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010. 1240 p.
M’BOKOLO, Elikia. A África Equatorial do oeste. In.: MAZRUI, Ali A. (editor). História Geral da África, VIII: África desde 1935. 2.ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010. 1272 p.
História de Angola
Esse módulo traz um breve resumo da história de Angola e seu processo de formação focando, principalmente, em aspectos ligados ao período de exploração colonial, tendo em vista as abordagens das literaturas que formam o centro de estudo desse site.
As referências utilizadas para a elaboração do texto encontram-se listadas no final do módulo.
Antes do período colonial
Situada na costa ocidental do continente africano, Angola possui um vasto território com faixa litorânea no oceano Atlântico e grandes variações de clima e vegetação: floresta equatorial na bacia central do rio Zaire, floresta tropical no norte e em Cabinda, savanas no centro e no sul do país.
A história do território angolano antes da invasão colonial não conta com muitos registros escritos para uma melhor compreensão da formação e desenvolvimento dos povos que habitavam a região. Segundo o historiador Jan Vansina, no volume IV da coleção História Geral da África, o estudo do período anterior ao século XVI teve que se dar baseado majoritariamente em fontes arqueológicas e linguísticas, conforme o trecho da obra abaixo:
Reconstruir o passado dessa vasta zona do continente africano no período que vai de 1100 a 1500 constitui um difícil desafio para o historiador. São poucas as fontes de época de que dispomos atualmente, uma vez que o mais antigo manuscrito existente data somente de 1492, e as incipientes escavações efetuadas em Shaba e no baixo Zaire (Congo) e em outras regiões, não nos podem fornecer um quadro cronológico bem definido. Já as fontes escritas posteriores tratam apenas do reino do Kongo…
...Nessas condições, a única abordagem possível e tentar reconstituir a historia a partir dos dados arqueológicos e linguísticos que temos, relativos ao período em estudo e ao período anterior, cotejando-os com os testemunhos mais recentes. Dessa forma construiremos um quadro ligando os fios mais antigos aos mais novos – embora este conjunto, afinal, não passe de uma soma de hipóteses a serem verificadas. (VANSINA, 2010, p. 623-624)
Nesse período anterior à invasão dos portugueses, registros dão conta de que existiram diferentes organizações políticas e sociais dispostas em vários Estados na região que posteriormente se tornou Angola. Pra citar alguns: Império de Lunda; Estados do médio Cuanga (Iaca, Matamba, Holo, Bondo e Cassangue); Estados do planalto central e do sul (Bailundo, Huambo, Bié e Galangue); o reino do Congo; e os Estados da Costa do Luango (Luando, Cacongo, Ngoyo). Destes, o mais estável foi o reino do Congo, que só foi sucumbir ao poder bélico dos colonialistas no final do século XVII.
O violento processo de colonização
Os portugueses iniciaram sua invasão colonial em 1482 na costa ocidental africana por meio da esquadra comandada pelo navegador Diogo Cão, em busca de escravizados e metais preciosos. A partir de 1490 passaram a se relacionar com a administração do reino do Congo, maior e mais importante Estado da região no período.
Nesse período, frequentemente denominado afro-português, em fins do século XV, o rei do Congo, Nzinga a Nkuvu, admirou-se com o poder das armas de fogo dos portugueses. Também entendeu que a religião católica poderia ser um instrumento político importante a seu favor, não tardando em batizar-se, recebendo o nome de D. João I, e a fazer uma aliança com Diogo Cão. O sucessor, seu filho Nzinga Muemba (1506-43), cujo nome de batismo era D. Afonso I, com o apoio dos fidalgos da corte e dos portugueses, guerreou com as nações vizinhas, aumentando o número de escravos, o que era de inteiro agrado de Portugal. (HERNANDEZ, 2005, p. 564)
O reinado de Nzinga Muemba foi crucial no que concerne às relações políticas entre o Reino do Congo, os reinos vizinhos e os portugueses, como explica Vansina no fragmento seguinte volume V da coleção História Geral da África, editada pela UNESCO:
A vitória de Afonso I marcou o início do mais longo reinado do Congo, ou seja, de 1506 a 1543. O papel desse rei foi fundamental abriu o país a Portugal, acarretando assim uma considerável reorganização política e econômica, bem como uma assimilação voluntária de elementos do cristianismo que acabou por se implantar ali de forma definitiva. Cristão desde 1491 e protetor dos raros missionários antes de 1506, esse chefe de facção, uma vez rei, transformou rapidamente a Igreja católica em religião de Estado. Seu filho Henrique, como bispo consagrado em Roma, esteve a frente da Igreja do Congo de 1518 a 1536. Em seguida, o controle do bispado caiu nas mãos dos portugueses. O tráfico negreiro intensificou-se a partir de 1514. Da mesma forma que o soberano de Portugal, Afonso I quis controlar o tráfico graças a organização de monopólios reais antes de tentar aboli-lo em 1526. Não funcionou e os monopólios reais foram constantemente desrespeitados pelos afro-portugueses de São Tomé e os vizinhos do reino, tanto na costa do Loango quanto no Ndongo, e até mesmo em Luanda, parte integrante do reino. O rei usou os recursos obtidos com o tráfico de escravos e com o comércio de marfim e de tecidos de ráfia para trazer técnicos e, sobretudo, missionários portugueses. Antes do fim de seu reinado, a vida sociopolítica transformara-se completamente. A diferença entre nobreza e os plebeus acentuara-se, a medida que a nobreza se tornava letrada e crista, além de tomar parte no tráfico de escravos. As pessoas comuns eram duramente exploradas. (VANSINA, 2010, p. 657-658)
O jogo das relações de poder estabelecidas nesse primeiro momento do contato entre os africanos do reino do Congo e os europeus foi muito mais pautado nas negociações entre as partes interessadas, sem o caráter belicoso. De acordo com o historiador Luiz Felipe de Alencastro, na obra O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul,
Àquela altura, a política ultramarina se encaixa em dois sistemas. O primeiro, “atlântico” – marcado pelo domínio territorial, o repovoamento e a economia escravista de produção açucareira –, engloba Madeira, Cabo Verde, São Tomé, e os enclaves da América portuguesa. O segundo, de tipo “asiático” – caracterizado pelo domínio indireto, a economia de circulação e o envolvimento mercantil –, toma corpo nas feitorias fincadas nos terminais das zonas de comércio descobertas na Guiné, no Congo, em Angola, Moçambique, na Ásia e, em boa medida, na Amazônia. […] Mas no Congo a estratégia de domínio indireto, pela via do comércio, perdurou durante um século e meio. (2000 apud HERNANDEZ, 2005)
Ao passo que Portugal se interessava cada vez mais pelas riquezas naturais da região, motivo de conflitos entre os Estados, o reino do Congo foi perdendo força e ficando vulnerável aos ataques de outros povos até que sucumbiu, favorecendo o aumento da influência lusitana sobre o local.
Os jaga* derrotaram as forças reais, e a corte foi obrigada a se refugiar em uma ilha do baixo Zaire. Inúmeros refugiados foram vendidos como escravos aos habitantes de São Tomé. O rei do Congo teve de apelar para Portugal, e este enviou um corpo expedicionário que reconquistou o país de 1571 a 1573. Porém, as tropas não se retiraram antes de 1575 ou 1576. A hegemonia do Congo na região estava aniquilada, já que, em 1575, foi fundada a colônia de Angola, o que levou um grande número de portugueses a comerciar em Loango a partir do mesmo ano. (VANSINA, 2010, p. 660)
A colônia de Angola surge, portanto, no contexto da derrocada do
reino do Congo, refletindo o aumento do poder dos portugueses
na região, mas não sem enfrentar muita resistência dos reinos
adjacentes, que impuseram muitas dificuldades aos lusitanos
e evitaram uma conquista ampla e soberana nesse contexto.
Desse modo, Portugal acabava se utilizando muito das
negociações com concessões, benefícios e prejuízos na relação
com os vários Estados existentes.
O tráfico de escravizados e a exploração de recursos naturais
foram as duas principais motivações econômicas dos portugueses
na relação estabelecida com os reinos nessa região. Segundo Vansina,
Em Angola, o domínio do tráfico de escravos chegou a tal ponto que, apesar dos esforços de Sousa Coutinho e de outros, o país não conseguiu diversificar seu sistema econômico, em virtude da falta de capitais procedentes de fontes que não fossem ligadas ao tráfico. A colônia continuou dependendo economicamente do Brasil e, por volta de 1800, ainda 88% de seus rendimentos provinham do tráfico de escravos com o Brasil e um pouco menos de 5%, do marfim enviado a Portugal. (VANSINA, 2010, p. 694)
O mapa abaixo mostra como estava disposta a região durante esse período de exploração colonial antes da definição de uma fronteira para a colônia de Angola.
Mapa do continente africano anterior à conferência de Berlim (1884 – 1885)
Fonte: https://africaarteeducacao.ciar.ufg.br/downloads.html
Como pode ser observado no mapa acima, não existia um território angolano. Diversos reinos e povos habitavam a região, sem que houvesse algum elemento identitário comum entre eles. Após a partilha do continente africano decidida na Conferência de Berlim*, entre 1884 e 1885, na conjuntura do imperialismo praticado por países europeus, Portugal, que concentrava sua presença em pontos localizados em torno de feitorias no litoral e no interior, passou a acelerar seu processo de ocupação territorial, concorrendo para que posteriormente fossem definidas as fronteiras angolanas conforme conhecemos atualmente.
A penetração efetiva no interior do continente só veio ocorrer no final do
século XIX. Neste momento a África estava sendo partilhada pelas potências
imperialistas da Europa. O direito de posse não era mais definido pelo
pioneirismo da descoberta. Desde então, o que vale é a ocupação efetiva do
território. (CONCEIÇÃO, 2009, p. 36)
A violenta ocupação se deu de forma demasiado conflituosa, em função da resistência dos Estados africanos, tanto os maiores e mais complexos quanto os menores, contra as ações de dominação
colonial por parte dos europeus. Nos fragmentos abaixo, Isaacman e Vansina, no livro V da coleção História Geral da África (UNESCO), trataram das diversas estratégias das nações africanas na região central do continente:
Confrontados com essa nova ameaça a sua soberania, os povos da África central reagiram por várias formas. Alguns, como os Lozi, entabularam uma ação diplomática dilatória, enquanto outros, como os Tonga e Sena, de Inhambane, aliaram-se aos europeus no esforço de se libertarem da opressão de uma aristocracia africana alienígena. Muitos Estados e até pequenas circunscrições da África central, por sua vez, pegaram em armas em defesa de sua autonomia. Embora compartilhassem um mesmo objetivo, os opositores diferiam substancialmente na estratégia de curto prazo, na composição étnica, na escala e no grau de êxito que alcançavam.
As estratégias de luta adotadas pelas populações da região tinham a mesma raison d’etre – repelir os europeus e proteger a pátria, bem como os modos e meios de existência. Conquanto a independência politica fosse o objetivo supremo, muitos Estados africanos estavam prontos a mobilizar suas forças para impedir qualquer violação de sua autonomia cultural ou soberania econômica… Uma das grandes causas de atrito foi a tentativa dos governos europeus e respectivos agentes – negociantes e missionários – de enfraquecer a posição de intermediários de diversos Estados interioranos e de pôr fim ao tráfico de escravos, já não mais compatível com o desejo das potências capitalistas de dispor de mercados “estáveis” e matérias-primas.
Durante as duas últimas décadas do século, os Yao, os Macua, os Yeke, os Chikunda, os Ovimbundo e os Chokwe, principalmente, resistiram tenazmente as pressões estrangeiras. Ao mesmo tempo, numerosos camponeses e agricultores batiam-se para manter o domínio de seus meios de produção e para evitar que não se apropriassem de suas terras, gado, trabalho e mulheres. (ISAACMAN; VANSINA, 2010, p. 192-194)
Sob o governo colonial, as populações que viviam nesta região sofreram com a opressão de um regime racista e altamente exploratório. As condições de trabalho e moradia dos povos locais eram péssimas, seguindo a lógica colonial de extrema exploração do trabalho – pagando baixos salários ou recorrendo ao trabalho compulsório – dos naturais da colônia em benefício econômico da metrópole. A síntese a seguir descreve brevemente a situação dos trabalhadores nos locais submetidos ao poderio colonial:
Em resumo, submetidos ao sistema colonial capitalista, os africanos foram sobrecarregados com ônus econômicos e sociais esmagadores. As famílias viram-se dispersas momentânea ou permanentemente. O campesinato local vivia aterrorizado com os excessos dos mercenários europeus ou africanos. No plano econômico, a exportação de grande parte da mão de obra intensificava, em várias regiões, as penúrias locais, dai resultando a estagnação e o subdesenvolvimento dos campos. (ISAACMAN; VANSINA, 2010, p. 204)
* Jaga
-
Segundo Vansina, no volume V do livro História Geral da África, a identidade desses grupos nunca foi estabelecida, sendo o nome jaga usado nas fontes como sinônimo de bárbaro e aplicado a uma série de guerreiros mais ou menos nômades. (VANSINA, 2010, p. 660).

* Conferência de Berlim
-
Reunião realizada entre novembro
de 1884 e fevereiro de 1885, onde
poderosos países europeus
decidiram dividir a África entre
zonas de domínio e influência de
acordo com seus interesses
econômicos e políticos.