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Nosso Musseque

MEMÓRIA E IDENTIDADES EM NOSSO MUSSEQUE

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O contexto de criação da obra

O romance Nosso Musseque, escrito no pavilhão prisional da PIDE na cadeia de São Paulo em Luanda entre os anos de 1961 e 1962, possui um enredo facilmente identificado com as vivências do próprio escritor, que cresceu num musseque da capital angolana e conviveu em meio à pluralidade racial num espaço habitado por pobres negros, mestiços e brancos.

No trecho de uma entrevista a seguir, Luandino fala um pouco sobre seu processo criativo durante a estadia na cadeia:

 

- É sabido que a maioria de seus textos foi escrita na prisão. Como se dava o processo de criação, armazenamento e publicação de seus manuscritos nesse período tão crítico?

- Como nós tínhamos o tempo todo a nosso dispor, porque aquele campo de concentração não foi feito para nos pôr a fazer trabalho pesado. Porque se houvesse trabalho, como havia muito desemprego em Cabo Verde, se houvesse trabalho a fazer, tinha que ser dado aos naturais se não havia reclamação porque nós estávamos ali presos. Então, tinha muito tempo e eu com o material que tinha armazenado em minha memória, com as memórias disso e às vezes com o sofrimento, por no Campo estar preso, obviamente, algumas coisas eu só podia livrar-me desse sofrimento escrevendo. (VIEIRA, 2007, p. 286)

A estrutura do romance

A estrutura narrativa do romance é polifônica, onde um narrador principal conta as histórias em primeira pessoa, ao passo que em diversos momentos conduz o foco narrativo para diferentes personagens, os quais trazem suas impressões e pontos de vista. A obra é dividida em três capítulos: Zeca Bunéu e outros; A verdade acerca do Zito; Carmindinha e eu; além de um glossário com expressões e vocábulos em kimbundo. Essas histórias vão sendo narradas a partir dos resultados da investigação desse narrador acerca de sua infância no musseque, contando algumas vivências dos moradores do bairro, mas sempre a partir da perspectiva dos personagens infantis. A narrativa apresenta características de alta fluidez e fragmentação diante de aspectos como: lapsos de memória; falta de uma ordem cronológica linear e pluralidade do foco narrativo que tece o enredo através de diferentes olhares. Desse modo, a obra apresenta algumas lacunas, parecendo estar incompleta em muitos trechos, trabalhando com o tempo em idas e voltas entre o presente e o passado, mas se conectando no final, através das visões de mundo acerca das experiências dos personagens.

 

Para contar esta história de sua comunidade do musseque, o narrador principal, agindo como um pesquisador, utiliza as seguintes “fontes”, conforme ele mesmo explica no decorrer da trama: suas próprias lembranças e testemunhos; os jornais antigos organizados pela turma do musseque (seu grupo de amigos); os escritos do capitão Bento Abano, um antigo marinheiro que incentivou as crianças a escreverem o jornal; os relatos das senhoras e dos meninos, os quais também apresentam suas memórias nas narrações; os fragmentos do caderno de Xoxombo, um de seus amigos, salvos do fogo por Zeca Bunéu – que sempre ouvia e contava histórias e, por isso, constitui-se como importante fonte para a construção da narrativa. Desse modo, o que mais importa na narrativa são as histórias em si e a competência na narração dos casos, e não uma suposta busca pelo retrato exato dos fatos. Isso já fica nítido no início da trama, quando o narrador prepara-se para contar a história de Xoxombo:

 

Talvez agora com as coisas que os anos e a vida mostraram, vindas de muitas pessoas diferentes, eu possa pôr bem a história do Xoxombo. Se não conseguir, a culpa não é dele nem da confusão que lhe pôs a alcunha. É minha, que meti literatura aí onde tinha vida e substituí calor humano por anedota. Mas vou contar na mesma. (VIEIRA, 2003, p. 7)

 

Os capítulos do romance estão divididos e sequenciados de acordo com as experiências e fatos mais importantes que afetam a vida dos moradores do bairro, em especial do grupo de amigos que viveu a infância local, formado pelo narrador principal junto com Zeca Bunéu, Zito, Xoxombo e Biquinho. Além destes, a jovem Carmindinha, se não era integrante desse grupo de amigos, era muito próxima deles e teve participação fundamental na trama. Na medida em que a narrativa transcorre, de modo não-linear, aqueles que eram crianças vão ganhando maturidade nas histórias por eles contadas, até que ao final do romance percebe-se um musseque muito transformado com a falta dos que se foram (mudaram-se ou morreram) e com a percepção mais apurada de suas raízes e do contexto de opressão por parte dos protagonistas.

O desenvolvimento do enredo

O primeiro capítulo, Zeca Bunéu e outros, apresenta a turminha de crianças do musseque e suas aventuras, como o caso em que Zeca Bunéu toma um tiro de um dos vizinhos, o evento da entrega dos brinquedos a partir dos escritos do caderno de Xoxombo e a saída de Biquinho e sua família do musseque por conta de uma desapropriação. A fluidez do tempo aparece desde os primeiros parágrafos, pois o narrador principal começa com uma cena de uma reunião de alguns integrantes já adultos durante o velório do amigo Xoxombo, porém ainda não na atualidade, para então começar as lembranças do passado, partindo da história da morte do próprio Xoxombo.

 

O segundo capítulo, A verdade acerca do Zito, conta a história de Zito, um dos mais velhos da turma, e como ele se envolveu em várias confusões, iniciando com o contato com uma mulher casada moradora do musseque, e terminando com sua prisão e deportação, por tentar roubar dinheiro da casa do policial, sô Luís, pai do Nanito, no intuito de ajudar a prostituta Albertina a pagar seu aluguel e não ser despejada do musseque.

 

O terceiro capítulo, Carmindinha e eu, apresenta o desfecho do romance com a explosão da violência por parte das tropas colonialistas e suas consequências. Em meio à repressão, temos o despertar da consciência anticolonial no sentido de unir a população oprimida contra o regime vigente, representado na figura de Carmindinha, uma jovem de dezesseis anos, que se levanta contra a mentalidade conservadora de seu próprio pai, o capitão Bento Abano, numa alegoria literária expressando a força dos ventos da mudança, da nova sociedade que se vislumbra a partir da luta pela independência do país.

Os ataques dos soldados colonialistas aos moradores nos musseques, descrito neste último capítulo, são análogos às reações do governo português aos levantes do 4 de fevereiro de 1961*, quando os movimentos anticoloniais comandaram um assalto às cadeias de Luanda para libertar os presos políticos, dando início à luta armada pela independência do país.

“— Vão nos matar! Socorro!…

Padre Neves nada que pôde fazer mesmo. As mulheres gritaram com os

monas(1) nos braços ou na mão, tropeçando em seus panos soltos, se

empurravam para fora, vendo, com olhos de terror, os soldados aos saltos

por cima dos bancos da igreja, as pedradas acabavam o resto dos vidros, e

então nosso Padre Neves, única pessoa que estava com a calma dele, adiantou na porta onde tinha fugido o sacristão e, sem pressa, fez entrar as mulheres e as crianças, pedindo sempre calma-calma mas, lá fora, aumentavam os gritos, ameaças, as pedradas entravam. E aí, na sacristia, as pessoas começaram falar era a revolta dos musseques, queriam matar os soldados que andavam provocar as pessoas nessa manhã, vinham a bater nas portas e janelas e chamando todas as mulheres e meninas de putas, tinham cuspido na cara dos velhos, invadido mesmo as cubatas(2).

Os soldados eram muitos, em grupos de três ou quatro, e adiantaram provocar para procurar confusão. Ainda hoje ninguém que pode saber o começo: sem que ninguém passasse a palavra de musseque em musseque, as pessoas agarraram nos arcos, nos paus, nas catanas, pedras, e vieram nas ruas para defender as mulheres, pelejar com os soldados, morrer se era preciso." (VIEIRA, 2003, p. 85-86)

Na sequência, em um domingo, os moradores revoltados partiram para cima dos soldados. Acuados, estes se refugiaram em uma igreja em plena missa. No entanto, a fúria dos explorados dos musseques parecia ter sido provocada para uma cilada que levaria a desejada “limpeza”, pois logo chegaram outros soldados e cercaram os angolanos, promovendo uma chacina que não poupou nem os velhos, as mulheres e as crianças.

E nesse grande silêncio que os tiros fizeram chegavam os gritos do povo, largando tudo pelo capim, agarrando os filhos no peito ou nas costas, os berros dos soldados e polícias, a poeira de cubatas e quintais a cair e, a comandar tudo, o tossir seco e repetido das pistolas-metralhadoras batendo as balas nas casas, por cima e por baixo, nos corpos, pelo areal, os corpos pelo areal, uns quietos a olhar o céu, outros torcendo sua dor na areia vermelha com o sangue que se espalhava. (VIEIRA, 2003, p. 86)

Carmindinha presenciou esse fato, pois estava na missa com a mãe, e passou, desde então, a questionar o seu pai, o Capitão Bento Abano. Acusava ela: “Batem-te na tua porta, insultam-te na tua filha e você fica com seu respeito, sua educação, não liga nessas coisas, não é? Fala que o povo só quer é vinho e roubo, mulheres, vestir casaco e gravata, que já não tem homens como antigamente...” (VIEIRA, 2003, p. 88). Em resposta a essa imobilidade do pai, a inconformada Carmindinha não aceita as acusações, feitas pelo pai, de aculturação dos angolanos pelos portugueses e rebate: “Isso tudo já morreu, Senhor Capitão! Está morto, não serve para nada papá!... Agora não é hora de esperar que o Zeca vai-se instruir, que eu vou m’instruir, todos são educados e vamos fundar nossa associação literária!” (VIEIRA, 2003, p. 89).

Quem acaba morrendo na obra é o próprio Senhor Capitão Bento Abano. O mestre, experiente por anos de navegação, sábio pelo estudo e ativo na escrita em jornais, representava a busca pela tradição. Acabam ficando, porém, ensinamentos que serão importantes. Junto com a revolta de Carmindinha, amadurece a consciência identitária a partir das vozes exploradas que, negras mas também brancas e mestiças, habitantes do mesmo solo, foram sempre condenadas à não-identidade. Identidade essa que passa a compreender a tradição mas não busca reproduzi-la, já que os tempos são outros e as demandas também. Prova dessa compreensão é que o olhar do Capitão sobrevive no olhar de Carmindinha. “Dizia o Zeca Bunéu que, sem esse olhar, Carmindinha não existia.” (VIEIRA, 2003, p. 93).

Conclusões

Baseado em suas memórias de infância, Luandino Vieira construiu uma trama onde a população pobre moradora dos musseques da capital angolana protagonizou diversas situações reforçando suas identidades, seu pertencimento a um espaço marcado pela exploração colonial e pela resistência à opressão lusitana.

 

A consciência de união coletiva contra um inimigo comum passou a levantar-se pela oposição aos sujeitos vistos como opressores, uma vez que os antigos moradores do musseque enxergavam-se explorados por aqueles que exerciam o poder, conforme as situações relatadas nesse resumo.

 

Nosso Musseque apresenta uma literatura pautada nas ações dos moradores da periferia de Luanda, que agiram como sujeitos de um processo histórico e reagiram diante da exploração colonial, apontando para a esperança da coletividade no sentido de fortalecer uma identidade nacional em contraposição aos colonialistas, apresentando desse modo as marcas do projeto político do MPLA. Esses sujeitos contaram suas próprias histórias, baseados nas memórias e nos relatos de seus conterrâneos.

Referências

VIEIRA, Luandino. A Literatura se alimenta de Literatura. Ninguém pode chegar a escritor se não foi um grande leitor. [Entrevista concedida a] Joelma G. Santos. Revista Investigações - Linguística e Teoria Literária, Recife, v. 21, n. 1, p. 279-290, nov. 2007. Disponível em https://periodicos.ufpe.br/revistas/INV/article/view/1388

______. Nosso Musseque. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.

* 4 de fevereiro de 1961

  • as ações efetuadas nessa data marcam o início da guerra anticolonial, de acordo com o MPLA.

Notas

(1) crianças

(2) casas populares

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