HISTÓRIA & LITERATURA
Angola e a luta anticolonial
O ensino de História da África no Brasil
Pautado na legislação educacional que torna obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira em toda a rede de ensino do país, este módulo vai tratar do ensino de história da África no Brasil a partir das seguintes problematizações dispostas em seções: por que estudar o continente africano; (des)construindo conhecimentos a respeito de África e a ausência dos estudos sobre África no ensino de história no Brasil.
Serão disponibilizadas informações e discussões a respeito do continente africano de modo a combater as visões estereotipadas, reducionistas e preconceituosas construídas ao longo do tempo em nosso país.
Seguem abaixo as seções abordando o debate em torno do ensino de história da África.
Porque estudar o continente africano
Optei por iniciar esse módulo com uma afirmação, e não uma pergunta, justamente por não haver dúvidas sobre a importância em conhecermos a respeito do continente africano. Sobram razões para nos debruçarmos sobre um tema tão negligenciado por tanto tempo no ensino de nosso país.
As influências da África em nossa cultura são incalculáveis, e partindo dessa premissa, pretendo refletir a respeito das motivações para buscarmos a compreensão desse continente tão diverso.
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Conhecer sobre o continente africano significa conectar-se com algumas das raízes fundamentais de nosso processo histórico de formação social. Além da importância e repercussão globais de inúmeros legados culturais deixados por povos oriundos da África desde o surgimento da humanidade, segundo os primeiros registros, no caso específico do Brasil, milhões de seres humanos escravizados desembarcaram na costa do país, no maior e mais intenso processo de migração forçada já realizado em todo o planeta. No que concerne a Angola, trata-se do país que mais forneceu trabalhadores escravizados para o Brasil durante o tráfico internacional ocorrido nos séculos XVII e XVIIl.
A ligação entre Angola e Brasil não parou nesse quesito. O primeiro país a reconhecer a independência angolana em todo o mundo foi justamente o Brasil, fato ocorrido no esteio da política externa do Pragmatismo Responsável visando a ampliação de mercados consumidores por parte do governo militar brasileiro, mediante interesses geopolíticos e sobretudo de expansão da economia brasileira. Reproduzo a seguir um trecho no qual o professor e pesquisador Juvenal Conceição analisa essa questão.
O Brasil precisava dar uma demonstração vigorosa e inequívoca de rompimento com seu passado de apoio ao colonialismo português. Sem dúvida que, reconhecer o novo regime de Angola, quando a situação não parecia definida, nem mesmo para a maioria dos países africanos seria uma atitude ousada. Ser o primeiro a reconhecer certamente, traria reflexos para as relações futuras, não só com Angola, mas com toda
a África negra. (CONCEIÇÃO, 2009, p. 63).
Para além das questões geopolíticas e diplomáticas, o campo literário também apresentou importantes ligações entre Brasil e Angola. Pepetela e Luandino Vieira foram fortemente influenciados pelo modernismo brasileiro, caracterizado pelo intenso cunho nacionalista e pela ruptura com a tradição cultural e literária portuguesa, além do regionalismo nordestino e seu traço social. Tais marcas podem ser observadas nas obras que compõem o objeto de estudo desse site. Segundo Luandino Vieira em entrevista
O Jorge amado que me deu uma visão da humanidade, dos seus personagens, da inclusão de todo o tipo de personagem como tão valioso como qualquer outro tipo de personagem e, sobretudo, a questão da introdução do negro na Literatura, a partir de Jubiabá que ninguém pode mais esquecer; e, depois, Guimarães Rosa por suas personagens, por sua ética. As questões éticas em Grande sertão, o diálogo do bem e do mal, e dum ponto de vista óptico, ontológico... é verdade, eu não me aproximo muito da parte filosófica. Tudo isso contribuiu para minha formação. (VIEIRA, 2007, p. 284)
Seguindo a reflexão a respeito do legado dos povos vindos da África em nossa sociedade, facilmente percebemos à nossa volta os diversos aspectos culturais trazidos por grupos humanos vindos desse continente. Na culinária, no idioma, nas artes em geral, são alguns dos campos altamente influenciados por culturas de origem afro.
Outra motivação para conhecer o continente africano se refere ao combate às visões preconceituosas e estereotipadas sobre essa região, alimentadas por anos de uma África negligenciada em nossa educação escolar. Partindo disso, é importante, por exemplo, entrarmos em contato com as diversas formas (coletivas e individuais) de resistência praticada pelos escravizados, as quais foram por muito tempo solenemente esquecidas, por políticas educacionais fundadas no eurocentrismo e na discriminação aos povos considerados “não civilizados”.
Antes de 2003 – ano da promulgação da primeira lei obrigando a inserção do estudo de temas em torno das culturas africana e afro-brasileira em nossas escolas, o currículo da educação básica brasileira raramente fazia menção às ressignificações que os escravizados deram aqui no Brasil às suas religiões, línguas, danças e rituais. Até então, as aulas e materiais didáticos da disciplina história destacavam quase que exclusivamente a ação das metrópoles, abordando de modo eufemista o violento processo de exploração colonial, centrando-se em grande medida no protagonismo dos países ibéricos e transmitindo um discurso eurocêntrico que praticamente advogava a concepção da colonização como parte de um processo de evolução civilizatório.
No caso deste material didático, o objeto de análise baseado em produções de caráter anticolonial, elaboradas por angolanos e protagonizadas por sujeitos da população local, pode proporcionar ao professor de história o desenvolvimento de estudos a respeito de um país africano, utilizando uma forma de representação (literária) da realidade sobre a qual não se costuma dar muita atenção na educação básica. Em geral, quando utilizadas, as literaturas estrangeiras trabalhadas pelos nossos professores no ensino médio, majoritariamente na disciplina de Língua Portuguesa, são oriundas de países europeus ou dos EUA.
As linhas escritas acima não possuem a pretensão de esgotar as reflexões a respeito das contribuições culturais de origens africanas em nossa sociedade, dado o caráter incomensurável desse tipo de levantamento. Nesse sentido, diminuir a distância entre a África e o Brasil representa um desafio permanente e um combate aos efeitos do processo histórico excludente de nossa educação escolar, que felizmente, após as pressões e mobilizações dos movimentos sociais de luta contra a discriminação racial, começou a se modificar e passou a favorecer a produção e circulação de materiais a respeito do continente africano e da cultura afro-brasileira nas diversas áreas de conhecimento.
(Des)construindo conhecimentos a respeito de África
Ideias distorcidas e preconceituosas fomentaram a construção de imagens reducionistas do continente africano. A escola, que deveria representar uma resistência cultural a esse tipo de informação, infelizmente contribuiu por muito tempo para sedimentar tais visões estereotipadas.
Atualmente, após as leis 10639(1)/2003 e 11645(2)/2008, vivemos um contexto com amplas possibilidades de leituras e abordagens sobre a África, sendo de fundamental importância os profissionais da educação básica, sobretudo na área de história (nosso campo disciplinar), atuarem no sentido de desconstruir as ideias equivocadas e promover o acesso a estudos sérios e consistentes acerca do continente africano em toda a sua pluralidade.
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Por incrível que possa parecer, muitos estudantes até bem pouco tempo ainda achavam que a África se tratava de um país. Infelizmente ainda se encontra gente pensando dessa forma, apesar desse cenário ter melhorado consideravelmente nos últimos anos. Equívocos grosseiros desse nível se devem a um longo processo histórico de um modelo de ensino eurocentrado que sempre relegou à África uma posição secundária nos estudos de nossos jovens.
Não se pode falar em África sem mencionar seu aspecto multicultural. Tentar homogeneizar a percepção do continente africano é tão incorreto quanto enxergar a Europa ou a Ásia como uma massa uniforme sem considerar suas diferentes nacionalidades e níveis de desenvolvimento, além de seus peculiares aspectos históricos em cada região e país. Toda a diversidade de um continente acaba sendo desvalorizada em função das generalizações mencionadas.
No caso desse site, houve todo um cuidado em sua elaboração no sentido de não fazer qualquer alusão a Angola representando a África como um todo, ou vice-versa. Pode-se observar, nas resenhas e nos textos analíticos, como Angola é referenciada em sua singularidade, em seus aspectos culturais próprios, na formação nacional múltipla e diversificada de sua população, destacando inclusive os momentos em que os autores das obras analisadas possam ter feito algum tipo de generalização, como no que concerne ao trato com as identidades nacionais, articulada com o projeto de nação do MPLA.
O estudo de um recorte da história de um país africano através de obras literárias produzidas por escritores de sua nacionalidade pode significar uma salutar aproximação dos estudantes com aspectos culturais específicos provenientes desse continente complexo. Nesse sentido, a abordagem do professor de história é um ponto chave para combater os estereótipos e preconceitos teóricos e estimular seus educandos a apreenderem conhecimentos sobre a África e suas peculiaridades através do contato direto com produções genuinamente africanas, sem perder de vista a singularidade da nação em questão.
PARA SABER MAIS
Ótimas indicações de literaturas produzidas em países africanos no link a seguir: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/paraconheceraliteraturaafricana/
A ausência dos estudos sobre África no ensino de história no Brasil
Conforme foi observado, os estudos sobre o continente africano foram negligenciados por muitos anos de um modelo de ensino demasiado eurocêntrico. Após a inserção dos estudos ligados a África por meio da legislação positiva iniciada em 2003, esse contexto educacional começou a mudar paulatinamente.
Importante avaliarmos os avanços dos últimos anos e pautarmos o que ainda precisa ser melhorado, refletindo acerca da ausência de África no ensino de história em nossa educação básica.
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Em que pesem as melhorias representadas pela legislação voltada para a aplicação dos estudos sobre África em nosso currículo escolar, ainda sofremos com a ausência desse rico continente no ensino da disciplina história.
Parte desse problema tem origem na formação de nossos professores, em cursos de licenciatura deficitários nesse campo de conhecimento, seja por terem demorado demais a implementar componentes curriculares com essa temática em seus programas, seja por ainda possuírem estruturas curriculares basicamente eurocentradas. Na minha graduação, por exemplo, tive acesso a apenas uma disciplina de História da África, de caráter optativa, em todo o currículo do curso de História na UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana), em meados dos anos 2000, antes de uma reforma curricular. Como se apenas uma disciplina pudesse dar conta de toda a história de um continente demasiado complexo e culturalmente diversificado.
De acordo com Anderson Oliva em seu artigo A História da África nos bancos escolares. Representações e imprecisões na literatura didática, publicado em 2003, até aquele momento, os importantes avanços no tipo de ensino de história nas universidades, fugindo do modelo positivista, ainda não contemplavam uma significativa ampliação de estudos no abarcando efetivamente a História da África.
Enfim, o momento é propício ao debate da questão, já que o atual governo, na época com poucos dias de existência, sancionou uma lei tornando obrigatório o ensino da História dos afro-brasileiros e da África em escolas do Ensino Fundamental e Médio. Medida justa e tardia, e ao mesmo tempo difícil de ser implementada. Isso por um motivo prático: muitos professores formados ou em formação, com algumas exceções, nunca tiveram, em suas graduações, contato com disciplinas específicas sobre a História da África. Soma-se a esse relevante fator a constatação de que a grande maioria dos livros didáticos de História utilizada nesses níveis de ensino não reserva para a África espaço adequado, pouco atentando para a produção historiográfica sobre o Continente. Os alunos passam assim, a construir apenas estereótipos sobre a África e suas populações. Portanto, seria justo perguntar: como a História da África é ensinada em nossas escolas? (OLIVA, 2003, p. 428-429)
Anos mais tarde, Anderson Oliva avaliou que houve melhoras na produção voltada para África, porém ainda havia muito o que avançar. Em artigo de 2009, extraído de sua tese de doutorado, o pesquisador fez a seguinte análise:
Como observador atento e interessado nas experiências e projetos de abordagem da história africana em nossas escolas, estou me convencendo que vivemos tempos promissores acerca da questão. As atividades interdisciplinares, os encontros e colóquios, as publicações e os cursos de formação/qualificação se multiplicam. Sendo menos otimista, digamos que esta seja uma onda em perspectiva, talvez uma tendência. Caso ela se consolide e encontre nas universidades a confirmação de outra tendência – o aumento da produção e da formação de pessoal especializado nas temáticas africanas – os próximos anos encontrarão um cenário positivo para tratamento do tema. (OLIVA, 2009, p. 214)
Hoje temos um cenário com maiores possibilidades de pesquisa acadêmica no campo da História da África, e mais livros didáticos incorporando os estudos a respeito do continente africano dedicando maior espaço de atenção a essa temática. Porém ainda temos muito a avançar em direção a um ensino de história que dê conta da África com a visibilidade que ela deve ser aplicada.
Nesse sentido, torna-se ainda mais importante a elaboração de qualificados materiais didáticos de história voltados para os ensinos fundamental e médio, tendo em vista que podem concorrer para o melhor funcionamento de uma espécie de engrenagem conforme os seguintes aspectos: permitir aos alunos o contato com bons estudos a respeito do continente africano; estimular professores da educação básica a continuarem suas formações e desenvolverem pesquisas sobre temas em torno de África nas universidades; ampliar em quantidade e qualidade a oferta de materiais didáticos que contemplem a História da África; aumentar a demanda de interessados em utilizar os referidos materiais em suas aulas.
Como podemos observar, nossa postura como profissionais da História dedicados ao ensino de temas ligados ao continente africano tem valor primordial no combate às generalizações e estereótipos, na educação antirracista e na presença permanente da África no ensino de história para nossos jovens da escola básica. A mudança de perspectiva na educação escolar de modo a amparar os estudos acerca da História da África e dos Africanos (conforme o texto legal) é condição elementar para conseguirmos formar estudantes livres de visões preconceituosas, e consequentemente sedimentarmos o caminho para a construção de uma sociedade livre da injustiça racial.
Notas
(1) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm
(2) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.htm
Referências
CONCEIÇÃO, Juvenal de C. Revista Veja: Um olhar sobre a independência de Angola. 1a.. ed. São Paulo: Gandalf Editora, 2009. v. único.
OLIVA, Anderson. A História da África nos bancos escolares. Representações e imprecisões na literatura didática. Revista de Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, Ano 25, nº 3, p. 421-461, 2003. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/eaa/v25n3/a03v25n3.pdf
______________. Lições sobre a África: abordagens da história africana nos livros didáticos brasileiros. Revista de História, São Paulo, nº 161, p. 213-244, 2009. Disponível em http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/19124
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA DO BRASIL. Lei n. 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Brasília, 2003. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm
________________________________________. Lei n. 11.645, de 10 de março de 2008. Brasília, 2008. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm
VIEIRA, Luandino. A Literatura se alimenta de Literatura. Ninguém pode chegar a escritor se não foi um grande leitor. [Entrevista concedida a] Joelma G. Santos. Revista Investigações - Linguística e Teoria Literária, Recife, v. 21, n. 1, p. 279-290, nov. 2007. Disponível em https://periodicos.ufpe.br/revistas/INV/article/view/1388
PARA SABER MAIS
O link a seguir traz a indicação de 10 romances oriundos de diferentes países do continente africano. Vale a pena conferir: http://www.afreaka.com.br/notas/10-romances-africanos-imperdiveis/
PARA SABER MAIS
O projeto Afreaka propõe mostrar a diversidade do continente africano fora dos estereótipos. São apresentadas produções culturais dos variados campos artísticos e intelectuais (música, fotografias, artigos, reportagens, literatura) originadas dos diversos países do continente. Vale conferir: http://www.afreaka.com.br/