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Luuanda

LUUANDA E A RESISTÊNCIA CULTURAL NOS BAIRROS POPULARES

Angola & Literatura - 'LUUANDA', de Luan

Sequência de capas das 2ª, 3ª e 4ª edições do livro. Extraída de http://livrosultramarguerracolonial.blogspot.com/2015/08/angola-literatura-luuanda-de-luandino.html

Luandino Vieira escreveu Luuanda quando estava preso pela PIDE na cadeia de São Paulo em Luanda, por suas atividades ligadas aos movimentos pela independência. A obra retrata o ambiente de exploração onde viviam os moradores dos musseques (bairros periféricos) de Luanda, os quais conviviam diariamente com problemas como a falta de luz elétrica, saneamento básico, ruas asfaltadas, infraestrutura básica na construção das habitações, assistência social em geral, num quadro caótico promovido pela administração colonial.

Censurada pela ditadura portuguesa quando de seu lançamento em 1963, esta obra causou grande incomodo ao governo lusitano principalmente por sua rebeldia em retratar a vida na periferia da capital angolana lançando mão de uma linguagem onde misturava o português ao kimbundo* de modo considerado subversivo pelo poder colonialista.

Em entrevista Luandino falou um pouco sobre suas inspirações

para a criação literária tal qual ocorreu em Luuanda, conforme

o trecho abaixo:

- É notória a paixão do senhor pela capital de Angola, a começar pelo nome

que recebeu de seus amigos. A maioria de suas narrativas traz como cenário

principal a cidade de Luanda, com seus bairros e costumes sendo transportados

para dentro do texto literário. As personagens, brancas, negras e mulatas, povoam

todo esse universo ficcional movimentando as narrativas. Como se dá o processo de
elaboração e criação de seus textos?

- Esses textos que se referem ao espaço cultural, mais do que físico e humano de Luanda, foram e continuam, quando são produzidos, a ser produzidos a partir da memória, da minha memória. E a minha memória é baseada numa vivência muito intensa, muito determinada, muito funda, eu ia dizer até muito séria para uma criança, que foi a minha infância. Eu era uma criança não muito participativa, mas era uma criança muito observativa. Tava sempre a observar. Então, tudo quanto se passava com a minha família, com as relações com as famílias vizinhas dentro do meu bairro, do meu musseque, que é a favela, tudo isso se gravou, não que eu estivesse determinado a gravar isso. Não. Duma maneira muito natural tudo isso entrou para dentro de mim e é a partir desse material que eu vou elaborando e criando os textos. Às vezes, os textos partem duma situação, a questão duma galinha pôr um ovo e comer no quintal duma vizinha. Outras vezes, partem duma personagem. Estou a falar apenas de Luuanda que é um livro mais centrado na cidade de Luanda. (VIEIRA, 2007, 180-181)

O contexto de criação da obra

Estrutura e aspectos gerais da obra

O livro é estruturado em três contos: o primeiro, Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos, conta a história de um rapaz desempregado que, juntamente com sua avó, chega a um estado de miséria onde não havia o que comer em casa, a não ser raízes de plantas que vavó Xíxi pegara do lixo. O segundo conto, Estória do ladrão e do papagaio, fala sobre como ocorreu a prisão de um ladrão de patos, começando a história a partir de sua detenção; trata também da prisão de Garrido, ladrão do papagaio Jacó, porém dessa vez contando toda a história que motivou o homem a cometer esse delito. O último conto, Estória da galinha e do ovo, trata da briga entre duas vizinhas pela posse de um ovo, botado no quintal de uma delas, porém pela galinha que era propriedade da outra.

 

A oralidade é uma marca presente nas narrativas dos três contos a todo momento. Um narrador onisciente conta as histórias apresentando os diálogos dos moradores na forma como eles falavam. Vieira introduziu em seus textos o português falado nos musseques misturado ao kimbundo, com diversas palavras e expressões nesse idioma, apresentando-os não de forma exótica, mas integrada ao conjunto maior da trama. A força da cultura local fica evidente através da língua, onde o português surge de modo bastante modificado, não se sobrepondo ao idioma kimbundo.

— Vamos comer é o quê? Fome é muita, vavó! De manhã não me deste meu matete(1), Ontem pedi jantar, nada! Não posso viver assim...

Vavó Xíxi abanou a cabeça com devagar. A cara dela, magra e chupada de muitos cacimbos(2), adiantou ficar com aquele feitio que as pessoas tinham receio, ia sair quissemo(3), ia sair quissende(4), vavó tinha fama...

— Sukua’!(5) Então, você, menino, não tens mas é vergonha?... Ontem não te

disse dinheiro ‘cabou? Não disse para o menino aceitar serviço mesmo de criado?

Não lhe avisei? Diz só: não lhe avisei?… (VIEIRA, 1982, p. 6)

Além do tema da oralidade, outros aspectos importantes compõem os enredos de todos os contos: os impactos da colonização na vida dos moradores da periferia de Luanda (pobreza, exploração social, discriminação sociorracial); o protagonismo dos moradores dos musseques; a importância do senso de coletividade entre os populares para lutarem contra as adversidades.

O desenvolvimento do enredo

No primeiro conto, Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos, a fome costura toda a narrativa. Vavó e seu neto lutam contra a miséria. Vavó Xíxi, uma mulher marcada pelo sofrimento, nunca tirara sua alegria: “Vavó encontrou a sua coragem antiga, sua alegria de sempre e, mesmo com o bicho da fome a roer na barriga, foi-lhe gritando, malandra e satisfeita” (VIEIRA, 1982, p. 16).

 

Num musseque de Luanda, Vavó mora com seu neto Zeca Santos, um jovem que sofre com a fome e a falta de oportunidade de trabalho, mas que sonha em vestir camisas bonitas e conquistar o amor de Delfina.

 

A exposição dos obstáculos colocados pela exploração colonial, os quais afetam a dignidade de vida dos personagens, e do espaço de discriminação imposto pelos sistema colonialista aos musseques, soam como um grito na narração literária, como no trecho a seguir do diálogo entre Zeca Santos e sua avó:

 

Zeca Santos fechou a cara magra com as palavras da avó. Na barriga, o bicho da fome, raivoso, começou roer, falta de comida, dois dias já, de manhã só mesmo uma caneca de café parecia era água, mais nada. Vavó quase a chorar lhe sacudiu da esteira com a vassoura para ele ir embora procurar serviço na Baixa e quando Zeca saiu, ainda falava as palavras cheias de lágrimas, lamentando, a arrumar as coisas:

— Nem maquezo(6) nem nada! Aiuê(7), minha vida! Esta vida está podre!…

Agora, recolhida no canto, continuava soprar o fogo; a lata de água fervia, mas nada que tinha para pôr lá dentro. (VIEIRA, 1982, p. 7)

O passado vem à tona na memória de Vavó Xíxi, remetendo o leitor a tempos de outrora, numa espécie de comparativo com a atual opressão do colonizador, voltando-se para a identidade: “e a lembrança dos tempos de antigamente não foge: nada que faltava lá em casa, comida era montes, roupa era montes, dinheiro nem se fala” (VIEIRA, 1982, p. 13).

O desfecho do conto envolve o leitor e coloca o narrador infiltrado na trama, sensibilizado pela dor da fome e pelas marcas do sofrimento no rosto de Zeca Santos.

O segundo conto, Estória do Ladrão e do Papagaio, narra a trajetória de Lomelino dos Reis e seus comparsas Garrido Kam’tuta e Xico Futa no roubo a sete patos, além do roubo do papagaio Jacó. A trama dos roubos estrutura as histórias de Lomelino dos Reis e Garrido Kam’tuta com a de Xico Futa, que já está preso na delegacia quando os dois são levados para lá, a do auxiliar Zuzé, e ainda a de Inácia e de outras personagens que vão desenhando a vida no musseque Sambizanga. Essas histórias se cruzam e interligam, formando uma rede que articula vários acontecimentos, onde o narrador começa pelo final (relatando o momento quando Lomelino foi detido) e daí em diante passa a voltar no tempo para explicar como as histórias de cada um vão se encaixar até chegarmos no instante em que os três estão na cadeia.

O trecho a seguir, parágrafo inicial do conto, traz uma breve descrição de seu personagem central:

Um tal Lomelino dos Reis, Dosreis para os amigos e ex-Loló para as pequenas, vivia com a mulher dele e dois filhos no musseque Sambizanga. Melhor ainda: no sítio da confusão do Sambizanga com o Lixeira(8). As pessoas que estão morar lá dizem é o Sambizanga; a polícia que anda patrulhar lá, quer já é Lixeira mesmo. Filho de Anica dos Reis, mãe, e de pai não lhe conhecia, o comerciante mais perto era mesmo o Amaral. Ou assim disse, na Judiciária, quando foi na justiça. Mas também podia ser mentira dele, lhe agarraram já com o saco, lá dentro sete patos gordos e vivos e as desculpas nasceram ainda poucas. (VIEIRA, 1982, p.32)

A terceira e última estória de Luuanda é a Estória da galinha e do ovo. A disputa por um ovo entre Nga Zefa e Nga Bina, duas negras vizinhas do musseque Sambizanga, acaba por envolver grande parte da comunidade local.

A galinha, que pertence a Nga Zefa, bota um ovo no quintal da gestante Nga Bina, e nesse momento começam as reivindicações pelo ovo. A primeira reivindica o ovo por ser a dona da galinha, enquanto sua vizinha argumenta que estava a alimentar a ave, que acabou por desovar em seu quintal. Inconformada, nga Zefa vai reclamar a posse do ovo em meio a “luta de arranhar, segurar cabelos, insultos de ladrona, cabra, feiticeira”. (VIEIRA, 1982, p. 83). A desordem se instala no musseque Sambizanga diante da impossibilidade das mulheres de definirem a quem pertence o ovo.

Várias pessoas aparecem para opinar e a mais velha, a Vavó Bebeca, surge como mediadora: “— Calma então! A cabeça fala, o coração ouve! Pra quê então, se insultar assim? Todas que estão falar no mesmo tempo, ninguém que percebe mesmo. Fala cada qual, a gente vê quem tem a razão dela. Somos pessoas, sukua’, não somos bichos!” (VIEIRA, 1982, p. 84).

Todo esse conflito se desenvolve num espaço aberto, “na hora das quatro horas”. (VIEIRA, 1982, p. 81). É fim de tarde, os homens ainda não voltaram do trabalho, as mulheres estão envolvidas com os afazeres domésticos, e as crianças ainda brincam na rua. No momento da maka(9), os moradores saem de suas casas e se reúnem nesse espaço aberto à circulação de produtos, ideias e pessoas. Ou seja, a maka se processa num espaço de intensa socialização onde as pessoas se relacionam, discutem suas questões e deliberam sobre seus assuntos. Nesse local caberá a uma mulher, a velha Bebeca, por sua sabedoria de mais velha, investigar as perspectivas contraditórias que se apresentam em relação à posse do ovo, buscando opiniões de diversas pessoas.

Desse modo, a velha Bebeca convoca, para a maka da galinha e do ovo, não apenas as mulheres envolvidas na confusão, mas também outros sujeitos de acordo com suas ocupações e posições históricas e sociais no musseque Sambizanga, a começar pelo comerciante, num trecho onde se pode observar a influência de aspectos sociorraciais:

Puxando o pano em cima do ombro, velha Bebeca começou:

— Minhas amigas, a cobra enrolou no muringue(10)! Se pego o muringue, cobra morde; se mato a cobra, o muringue parte!... Você, Zefa, tem razão: galinha é sua, ovo da barriga dela é seu! Mas Bina também tem razão dela: ovo foi posto no quintal dela, galinha comia milho dela... O melhor perguntamos ainda no sô Zé... Ele é branco!… (VIEIRA, 1982, p. 86)

Convocado pela velha Bebeca, Sô Zé, o branco dono da quitanda, logo tenta conseguir o ovo para ele mesmo, argumentando que o milho que alimentara a galinha fora vendido por ele e ainda não havia sido pago. A partir de então, outros personagens surgem tentando, de acordo com suas posições político-sociais, se aproveitar da situação. Passa por ali o João Pedro, que era seminarista, o Sô Vitalino, cobrador de aluguéis, o Sô Artur Lemos, antigo trabalhador e hoje doente e beberrão. Todos lançando argumentos no intuito de tomar posse do ovo. Por fim, aparece a polícia querendo levar não o ovo, mas a galinha, e trazendo à tona a repressão e violência da polícia no período colonial. Por representar a verdadeira e concreta ameaça, a união entre os povos do musseque se restabelece, tendo como desfecho o voo da galinha Cabíri e a entrega do ovo das mãos de Vavó Bebeca para Nga Bina com o consentimento de Nga Zefa: “É, sim, vavó! É a gravidez. Essas fomes, eu sei... E depois o mona(11) na barriga reclama!” (VIEIRA, 1982, p. 101).

Essa disputa por um ovo representa alegoricamente a fome nos musseques de Luanda, o período difícil em que viviam diante da presença opressora do colonizador. Alguns trechos também retratam a violência da polícia sobre o povo, como no momento em que os soldados chegaram no grupo que discutia: “ninguém deu conta da chegada da patrulha. Só mesmo quando o sargento começou aos cocos nas costas é que tudo calou e começaram ainda arranjar os panos, os lenços na cabeça, coçar os sítios das pancadas.” (VIEIRA, 1982, p.98). Outro aspecto que chama atenção nesse conto de Luandino é a gravidez apresentada na trama. O final feliz, concretizado pela realização do desejo de uma mulher grávida, metaforizando a promessa de vida nova, um recomeço.

Conclusão

Em três contos com histórias sofridas, porém ao mesmo tempo apresentando pitadas de bom humor, Luandino Vieira apresentou muito da vida popular nos musseques, nas dificuldades do cotidiano, impactado sobretudo pela violência colonial.

 

Como foi observado, as memórias e o ambiente marcado pelas contradições de cunho sociorracial formam enredos ricos no retrato de uma cidade profundamente desigual, porém sem perder a esperança em dias melhores, vislumbrando um novo país após a vitória sobre os colonialistas, como no encerramento da última estória.

 

Os contos de Luuanda revelam, de forma singular, a busca por alternativas contra a opressão colonial, representada na figura dos personagens, em suas relações e conflitos. A força cultural da resistência fica evidente através da língua, das memórias e do cotidiano dos sujeitos dos musseques, protagonistas dos enredos.

Notas

(1) Matete – mingau

2) Cacimbo – época seca do ano; névoa, orvalho

3) Quissemo – zombaria

4) Quissende – repreensão

5) Sukua’! – expressão equivalente a “Ora!”

(6) Maquezo – cola (espécie de noz) e gengibre, mastigados para enganar a fome.

(7) Aiuê – exclamação de dor, lamento ou embevecimento.

(8) Musseque denominado Lixeira

(9) Maka – briga; conflito

(10) Muringue - moringa

(11) Mona - criança

Referências

VIEIRA, Luandino. A Literatura se alimenta de Literatura. Ninguém pode chegar a escritor se não foi um grande leitor. [Entrevista concedida a] Joelma G. Santos. Revista Investigações - Linguística e Teoria Literária, Recife, v. 21, n. 1, p. 279-290, nov. 2007. Disponível em https://periodicos.ufpe.br/revistas/INV/article/view/1388

______. Luuanda. São Paulo: Editora Ática, 1982.

* Kimbundo ou kimbundu

  • Idioma falado no noroeste de Angola, sobretudo na província de Luanda, onde está situada a capital do país. Uma das principais línguas nacionais do país.

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