HISTÓRIA & LITERATURA
Angola e a luta anticolonial
Notas
(1) Idioma falado pelos bacongos, habitantes da região da província de Cabinda, em Angola. No romance, o autor se refere a esse povo pela denominação de sua língua.
(2) Idioma falado na província de Luanda. No romance, o autor de refere aos sujeitos oriundos dessa região através da denominação de sua língua.
(3) Palavra em idioma kimbundo que significa notícia ou boato, de acordo com o contexto.
(4) Termo depreciativo se referindo aos portugueses
(5) Forma como o autor se refere a um natural da província de Cabinda
Referências
PEPETELA. Mayombe. São Paulo: Ática, 1982.
__________. “Não se festeja a morte de ninguém”. [Entrevista concedida a] Rita Silva Freire. in: Buala/originalmente publicada na Revista Caju, no dia 30 de Dezembro de 2011. Disponível em http://www.buala.org/pt/cara-a-cara/nao-se-festeja-a-morte-de-ninguem-entrevista-a-pepetela
SERRANO, Carlos. O romance como documento social: o caso de Mayombe. Revista Via Atlântica, n. 3, p. 132-139, dez. 1999. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/49013/53091
Mayombe
MAYOMBE E A VISÃO DOS GUERRILHEIROS NA LUTA PELA LIBERTAÇÃO
O contexto de criação da obra
Como veremos a seguir, Mayombe apresenta em sua trama diversas marcas de uma experiência pessoal, a partir das observações do escritor combatente. Inicialmente a obra não seria um romance, mas com o desenrolar das anotações, e diante da importância da escrita literária na luta promovida pelo MPLA, conforme observado nos módulos II e III, o autor o transformou em literatura. O trecho a seguir mostra Pepetela falando sobre o início da escrita dessa obra.
O Mayombe começou com um comunicado de guerra que fiz para a rádio. Achei-o tão interessante que o continuei, já com personagens. Tirei a primeira página, que enviei para a informação, e depois continuei. Na fronteira tinha mais disponibilidade, podia escrever de dia. Dizia aos meus companheiros: estou a escrever para perceber o que estou a fazer, estou em busca da realidade. (PEPETELA, 2011, p. 4)
Sobre as motivações para escrever esse romance, Pepetela falou em entrevista ao antropólogo Carlos Serrano, em 1999, um pouco a respeito de sua relação com a realidade circundante e como esse ambiente influenciou em sua escolha literária. Segue o trecho desse relato:
– Por que então escolheste a ficção quando poderias ter elaborado uma análise sociológica do tipo acadêmico? Foi tua posição como escritor ou a forma que encontraste de melhor objetivares os problemas?
– É porque realmente eu sou um ficcionista, não tinha nenhum objetivo. Eu escrevi não para publicar. Escrevi porque tinha necessidade de escrever. Estava em cima de uma realidade que quase exigia que eu escrevesse. Escrevendo eu compreendia melhor essa realidade; escrevendo eu atuaria também melhor sobre a própria realidade. Não quanto à obra escrita, mas pela minha atuação militante para melhor compreensão dos fenômenos que se passaram. Mas escrevia também para compreender melhor esses fenômenos. Claro que podia fazê-lo com um ensaio acadêmico, não era essa a minha intenção. Eu vejo a coisa como ficcionista. Não houve portanto nenhum objeto pré-determinado para eu poder escrever sem saber o que ia escrever.
Talvez a melhor medida que permitia ver como ia acabar.
As personagens foram aparecendo, a ação foi-se desenrolando, logicamente, dentro daqueles parâmetros duma situação que existia. Cenas imaginárias, uma ou outra pode não ser, uma ou outra não é. Mas de um modo geral é imaginário. É imaginário, mas foi a própria dinâmica das personagens que se foi impondo e deu naquilo. Portanto, não houve nenhuma objetivo.
Na época não tinha publicado nada, só alguns contos de juventude, mais nada… (SERRANO, 1999, p. 136-137)

Capas de diferentes edições do romance. Extraída de https://jornal.usp.br/cultura/em-mayombe-selva-e-lugar-para-o-surgimento-do-homem-novo-e-da-angola-independente/
Estrutura e aspectos gerais do romance
O romance Mayombe apresenta importantes aspectos de um compromisso político estreitamente ligado à luta anticolonial e ao projeto de nação defendido pelo MPLA, do nascimento de um país livre e socialista. A obra, dividida em cinco capítulos, trata das experiências e problemas enfrentados por um grupo de guerrilheiros do MPLA, numa base no interior da floresta do Mayombe*, na província de Cabinda, relatando seus medos, perspectivas, ambições, dificuldades, renúncias e necessidades: a luta individual de cada personagem por uma causa coletiva.
Partindo da visão dos combatentes, Pepetela desenvolve uma
trama em torno de dois aspectos principais: a busca pela
formação de uma identidade nacional angolana e as lutas de
libertação.
Os personagens que compõem a guerrilha na base possuem
nomes de guerra conforme fatores como: objetivos do MPLA, características pessoais, função desempenhada no movimento. Assim, temos o personagem Sem Medo (o comandante), Teoria (o professor), o Comissário, o Chefe de Operações, Muatiânvua (o marinheiro), Milagre (o da bazuca), Verdade, Lutamos, Ingratidão do Tuga, Mundo Novo (intelectual marxista ortodoxo que estudou fora do país), dentre outros.
Fora da base, outros personagens de destaque são Ondina (professora na cidade de Dolisie, noiva do Comissário) e André (responsável pela administração na cidade de Dolisie). Dolisie é uma cidade situada em território congolês, a nordeste da província de Cabinda, onde funcionava a burocracia administrativa do MPLA para atendimento e suporte técnico e logístico às bases próximas.
A floresta do Mayombe, densa e de clima equatorial úmido, acaba por se constituir como um relevante personagem do enredo. Suas características próprias, sua relação com os guerrilheiros influenciando e até mesmo definindo muitas de suas ações, sua resiliência diante da exploração colonialista, são alguns dos aspectos presentes na obra, demonstrando a importância desta floresta como elemento próprio da realidade angolana.
O Mayombe tinha aceitado os golpes dos machados, que nele abriram uma clareira.
Clareira invisível do alto, dos aviões que esquadrinhavam a mata, tentando localizar nela a presença dos guerrilheiros. As casas tinham sido levantadas nessa clareira e as árvores, alegremente, formaram uma abóbada de ramos e folhas para as encobrir. Os paus serviram para as paredes. O capim do teto foi transportado de longe, de perto do Lombe. Um montículo foi lateralmente escavado e tornou-se forno para o pão. Os paus mortos das paredes criaram raízes e agarraram-se à terra e as cabanas tornaram-se fortalezas. E os homens, vestidos de verde, tornaram-se verdes como as folhas e castanhos como os troncos colossais. A folhagem da abóbada não deixava penetrar o Sol e o capim não cresceu em baixo, no terreiro limpo que ligava as casas. Ligava, não: separava com amarelo, pois a ligação era feita pelo verde.
Assim foi parida pelo Mayombe a base guerrilheira. (PEPETELA, 1982, p. 42)
A estrutura narrativa da obra é polifônica (várias vozes), na qual um narrador onipresente e onisciente se intercala com alguns dos personagens guerrilheiros. Cada um desses observadores-participantes, com origem, ideologia, visão e propostas próprias, possui também ideais distintos, evidenciando os problemas para se conseguir a unidade na luta pela libertação de um país com uma sociedade demasiado complexa e diversa do ponto de vista cultural. Os personagens centrais, a floresta e o comandante Sem Medo, são referenciados pelos narradores na maior parte do tempo.
As lutas de libertação atravessam toda a trama, e em grande medida definem a estrutura narrativa. A sequência dos capítulos acompanha o desenvolvimento das batalhas de uma tropa do MPLA contra os colonialistas.
O desenvolvimento do enredo
No primeiro capítulo, A Missão, o grupo de guerrilheiros do MPLA segue em marcha na floresta do Mayombe em meio a uma missão objetivando encontrar civis locais e colonos portugueses, bem como armar emboscadas contra o exército lusitano. Alguns dos combatentes vão sendo conhecidos através de seus relatos, diante das dificuldades e desafios encontrados. A tropa obtém êxito nesse primeiro objetivo específico, mas não sem passar por problemas como as divergências sobre como abordar e convencer os trabalhadores a apoiarem o movimento, a questão do furto a um trabalhador e o acirramento das diferenças nacionais, conforme trechos analisados anteriormente.
O segundo capítulo, A Base, como o próprio título denota, trata do funcionamento orgânico da equipe de guerrilheiros em sua base na mata. Nesta parte, as relações entre os combatentes e entre eles e o Mayombe ficam ainda mais intensas, sendo esta floresta um palco de batalhas e esconderijo, um aliado em potencial para os soldados angolanos e uma permanente fonte de alimentos.
A comida faltava e a mata criou as «comunas», frutos secos, grandes amêndoas, cujo caroço era partido à faca e se comia natural ou assado. As «comunas» eram alimentícias, tinham óleo e proteínas, davam energia, por isso se chamavam «comunas». E o sítio onde os frutos eram armazenados e assados recebeu o nome de «Casa do Partido». O «comunismo» fez engordar os homens, fê-los restabelecer dos sete dias de marchas forçadas e de emoções. O Mayombe tinha criado o fruto, mas não se dignou mostrá-lo aos homens: encarregou os gorilas de o fazer, que deixaram os caroços partidos perto da Base, misturados com as suas pegadas. E os guerrilheiros perceberam então que o deus-Mayombe lhes indicava assim que ali estava o seu tributo à coragem dos que o desafiavam. (PEPETELA, 1982, p. 42)
A precariedade no apoio dispensado pela direção em Dolisie, na figura do responsável André, gera insatisfações que ficam evidentes nesse momento da trama, principalmente após a tropa receber um incremento de dezessete jovens guerrilheiros, motivo de muita reclamação do comando da tropa por conta da inexperiência dos novos comandados e da falta de provisões, tendo em vista que a chegada desse pessoal não veio acompanhada do envio de mantimentos, agravando uma situação onde passaram a ter mais bocas para os poucos alimentos que ainda restavam. Diante desse contexto, o comando decide enviar representantes para tratar diretamente com o responsável em Dolisie, expondo ainda mais os problemas no funcionamento interno do movimento.
O terceiro capítulo possui o nome da noiva do Comissário, Ondina, e segue o desdobramento dos desgastes entre a tropa e a direção em Dolisie. A falta de mantimentos concorre para uma situação de fome, afetando gravemente o relacionamento entre os combatentes, e o grupo passa a ficar dividido em função das origens nacionais e das afinidades com algum dos membros do comando da tropa. Ondina foi flagrada traindo o Comissário com André, catalisando ainda mais as insatisfações contra o responsável de Dolisie, que teve seu cargo de direção revogado e passou a se esconder, diante da repercussão. O fato de André ser kikongo(1) e o Comissário kimbundo(2) contribuiu para amplificar as tensões. Ocorrem mudanças administrativas importantes: Sem Medo recebe de um dirigente do MPLA a ordem de nomeação para a chefia em Dolisie, de modo temporário, ao passo que indica o Comissário para o comando da tropa.
Chega a Dolisie o mujimbo(3) dando conta da aproximação de tropas portuguesas à base dos guerrilheiros no Mayombe, formando um cenário de tensão para o encerramento deste capítulo e início do seguinte intitulado “A Surucucu”.
Após a informação, Sem Medo consegue reunir em pouco tempo trinta homens voluntários para ajudar a retomar a base e resgatar os possíveis prisioneiros. O grupo organiza-se para um ataque ao amanhecer na base que eles acreditam estar ocupada por portugueses. Durante a aproximação, pouco antes da ofensiva, se deparam com o Teoria no rio a banhar-se e descobrem que tudo não passara de um mal entendido onde o suposto ataque com tiros que Vewê (um dos jovens guerrilheiros, que foi até Dolisie avisar ao comando) tinha ouvido, na verdade eram os guerrilheiros tentando capturar uma cobra Surucucu que havia tentado dar o bote em Teoria no dia anterior, ali mesmo no rio. Após tal revelação, o clima ficou leve e até com muitas brincadeiras, apesar de ficarem definidas pelo comando algumas punições por conta do descuido com a situação. O comandante Sem Medo exaltou o poder de mobilização dos combatentes diante da situação de perigo, onde superaram até mesmo as diferenças de origem nacional para se unirem contra o ataque inimigo. Este capítulo encerra-se com a reunião do comando e a decisão de preparar um ataque contra a base dos portugueses que estava nas proximidades, aproveitando o impulso no movimento para ganhar terreno na guerra.
A Amoreira* é o nome do quinto e último capítulo, onde se
desenrola o último combate do romance. Para esta ofensiva
contra os tugas(4) fica definido que o Comissário será o chefe da
operação, visto que o comandante Sem Medo será transferido
após a batalha para abrir uma nova frente de guerrilha no leste
de Angola. Na noite anterior ao ataque, o comandante Sem Medo
falou um pouco de sua concepção a respeito da revolução:
Virou-se para Teoria. Este ainda não dormia. Sem Medo segredou-lhe:
— O que conta é a ação. Os problemas do Movimento resolvem-se, fazendo a ação armada. A mobilização do povo de Cabinda faz-se desenvolvendo a ação. Os problemas pessoais resolvem-se na ação. Não uma ação à toa, uma ação por si. Mas a ação revolucionária. O que interessa é fazer a Revolução, mesmo que ela venha a ser traída. (PEPETELA, 1982, p. 164)
Apesar das importantes baixas no confronto, a tropa teve êxito e conseguiu expulsar os portugueses do campo de batalha. Sem Medo foi baleado de modo fatal e morreu nos braços do Comissário, junto a uma grande amoreira, daí o título do capítulo.
Mas o Comissário não ouviu o que o Comandante disse. Os lábios já mal se moviam.
A amoreira gigante à sua frente. O tronco destaca-se do sincretismo da mata, mas se eu percorrer com os olhos o tronco para cima, a folhagem dele mistura-se à folhagem geral e é de novo o sincretismo. Só o tronco se destaca, se individualiza. Tal é o Mayombe, os gigantes só o são em parte, ao nível do tronco, o resto confunde-se na massa. Tal o homem. As impressões visuais são menos nítidas e a mancha verde predominante faz esbater progressivamente a claridade do tronco da amoreira gigante. As manchas verdes são cada vez mais sobrepostas, mas, num sobressalto, o tronco da amoreira ainda se afirma, debatendo-se. Tal é a vida. E que faz o rosto do mecânico ali no tronco da amoreira! Sorri para mim.
Os olhos de Sem Medo ficaram abertos, contemplando o tronco já invisível do gigante que para sempre desaparecera no seu elemento verde. (PEPETELA, 1982, p. 169)
O encerramento da narrativa apresenta uma defesa da unificação entre as nações que habitavam o território angolano através de uma espécie de conclusão de toda a luta no decorrer do enredo contra o inimigo colonialista, evidenciando o objetivo de unificação nacional, no sentido de reduzir as diversas nações a somente uma Angola, por parte do MPLA.
Puseram os corpos do Comandante e de Lutamos no buraco e taparam-nos. O Comissário não falou, como lhe competia. Não haveria oração fúnebre. Ekuikui chorava silenciosamente. Verdade também.
O Chefe de Operações disse:
— Lutamos, que era cabinda(5), morreu para salvar um kimbundo. Sem Medo, que era kikongo, morreu para salvar um kimbundo. É uma grande lição para nós, camaradas. (PEPETELA, 1982, p. 170)
Conclusões
De acordo com a análise acima, os conflitos pela libertação e a concepção de uma identidade nacional subjacente ao projeto do movimento anticolonial, do qual Pepetela era integrante, foram os pilares do fio literário traçado pelo autor nesse romance.
As situações de guerra, os conflitos internos, a controversa busca (dadas as divergências entre os combatentes) pelo apoio da população local, são alguns dos aspectos que permeiam o enredo, através do qual o leitor se aproxima da experiência guerrilheira do autor, ao passo que expõe os interesses do MPLA no tipo de sociedade pós-independência que se deseja construir, sem perder de vista seus problemas para a consecução de seus objetivos.
Mayombe contribui em muito para a compreensão da luta anticolonial e do funcionamento do MPLA, nas ações de uma tropa em articulação com seu comando, diante das dificuldades impostas pela guerra, pela configuração da sociedade, e a partir da visão de quem participa dos combates, sob as tintas produzidas pela memória viva e dinâmica de um militante combatente, revelando o tipo de proposta desse movimento de libertação para a construção da nova nação angolana pós-independência.
* Amoreira
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Árvore de porte médio e copa larga, fornecedora da amora, fruto comestível.
* floresta do Mayombe
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floresta tropical que cobre alguns países como a República do Congo, República Democrática do Congo (antigo Zaire) , Gabão, e em Angola está situada na região da província de Cabinda.