HISTÓRIA & LITERATURA
Angola e a luta anticolonial
LUTAS DE LIBERTAÇÃO
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Mayombe
Uma das mais importantes temáticas desta obra diz respeito às lutas de libertação, visto que o romance trata do desenrolar dos conflitos armados entre guerrilheiros pela independência e colonialistas a partir das experiências de uma tropa do MPLA numa região de Angola, situada na fronteira com o Congo. Desse modo, o enredo nos permite a compreensão contextualizada da luta do MPLA em aspectos como: as relações entre o movimento e as massas; as formas como a burocracia do movimento afetava as atividades da tropa; as concepções teóricas no movimento através da visão de seus combatentes; conflitos localizados contra os portugueses pelo domínio territorial. São diversas as situações de conflito apresentadas e/ou que remetem à luta pela libertação e suas vertentes.
No que concerne às relações com a população, a trama deixa evidente a necessidade do movimento em melhorar sua imagem junto ao povo, ganhar sua confiança para fortalecer a luta contra os colonialistas. Algumas ações do comando da tropa e avaliações de guerrilheiros indicam que o MPLA precisava lidar com o fato de muitos populares serem empregados nas companhias de exploração portuguesas, e diante disto deveriam ser traçadas estratégias para converter os trabalhadores em seus aliados, o que não era um consenso na tropa, tendo em vista que alguns guerrilheiros taxavam a grande maioria da população como traidores e até sugeriam que se devesse eliminar aqueles que estivessem trabalhando nas empresas lusitanas. O diálogo a seguir, extraído do romance, mostra a divergência entre o Comissário e o Chefe de Operações, membros do comando da tropa, a respeito do contato dos combatentes com os populares, no que o primeiro acaba convencendo o Comandante Sem Medo a agirem de modo dialógico com os trabalhadores em determinada missão.
O Comandante chamou o Chefe de Operações. Reuniram-se os três.
— Que pensas que se deve fazer? – perguntou Sem Medo ao Das Operações.
— Acho que devemos fazer uma curva, para apanharmos a picada(1) mais à frente e
chegarmos à estrada.
— E tu, Comissário?
O Comissário mediu as palavras, antes de falar.
— Penso que deveríamos aproveitar esta ocasião. Podíamos apanhar os trabalhadores, recuperar a serra, que é leve de transportar, destruir o buldozer e o camião. Era uma ação que fazia efeito e era esse o nosso objetivo. Porquê mudar?
O Chefe de Operações interrompeu:
— Nós somos militares. Nós devemos combater o inimigo. Por isso penso que a primeira ação nesta área devia ser militar. Os soldados devem andar à vontade na estrada. Esta picada vai de certeza dar à estrada. Uma emboscada era muito melhor. Os trabalhadores? Não vejo qual o interesse. Se ainda fosse para os fuzilar... Mas não. Para os politizar! Vocês acreditam que vamos politizar alguma coisa? Aqui só a guerra é que politiza.
O Comandante disse:
— Comissário, sei que uma operação política e econômica tem interesse. O problema é o seguinte: se destruímos estes aparelhos, a ação militar está estragada, pois os tugas ficarão prevenidos de que andamos por aqui...
— Claro – cortou o Comissário. – Mas isso será mais uma razão para que eles andem na estrada. São forçados a aumentar as patrulhas, pois aqui há população e eles querem cortar-nos dela. Eles andarão ainda mais e teremos pois mais oportunidade de lhes dar porrada. Qual é o problema? Não mataremos vinte na primeira emboscada, pois estarão mais atentos? Bem, mataremos dez. A guerra popular não se mede em número de inimigos mortos. Ela mede-se pelo apoio popular que se tem.
— Esse apoio só se consegue com as armas – disse o Das Operações.
— Não só. Com as duas coisas. Com as armas e com a politização. Temos de mostrar
primeiro que não somos bandidos, que não matamos o povo. O povo daqui não nos conhece, só ouve a propaganda inimiga, tem medo de nós. Se apanharmos os trabalhadores, os tratarmos bem, discutirmos com eles e, mais tarde, dermos uma boa porrada no tuga, então sim, o povo começa a acreditar e a aceitar. Mas é um trabalho longo. De qualquer modo, esta ação pode não impedir que se faça também uma emboscada.
— Questão de tempo e de comida – disse Sem Medo.
— Os camaradas aceitarão passar um pouco de fome, se lhes explicarmos o interesse da coisa.
— Bem – disse o Comandante –, vamos fazer como tu queres. Vamos rodear os grupos, aprisioná-los, destruir o que se puder, apanhar a serra, etc. Depois recuamos com os trabalhadores e estudaremos a possibilidade de se voltar à estrada para fazer a emboscada. Eu vou com dois camaradas pôr-me na picada, para lá do camião. Se ele fugir, nós varremo-lo. Se aparecer tropa, vinda da estrada, nós travamo-la. Vocês vão cada um do lado que reconheceram. Evitem fazer barulho. Cerquem-nos e, às dez em ponto, prendam-nos. Acertem os relógios. O lugar de encontro é aqui, se não houver novidade. Se o tuga aparecer, encontramo-nos onde dormimos ontem. (PEPETELA, 1982, p. 13-14)
A ação que sucedeu a conversa acima foi exitosa, com a tropa conseguindo converter funcionários de uma empresa colonial de extração de madeiras em seus apoiadores. Tal situação nos ajuda a compreender o funcionamento da exploração colonial através da qual a metrópole pilhava as riquezas do solo angolano utilizando a mão de obra local. No diálogo reproduzido na sequência, um oficial do comando da tropa explica aos trabalhadores como os portugueses pagavam pouco a seus contratados por uma atividade com a qual eles lucravam muito e ainda roubavam o solo angolano (lançando mão da ideia de um solo nacional, no caso). Como pode ser observado, o diálogo transcorre na perspectiva do convencimento de que o MPLA luta em favor da população, por parte do Comissário.
Aproveitando algumas informações colhidas, o Comissário falou para os trabalhadores, enquanto os garfos levavam o arroz com feijão ao seu destino.
— Vocês ganham vinte escudos por dia, para abaterem as árvores a machado,
marcharem, marcharem, carregarem pesos. O motorista ganha cinquenta escudos por dia, por trabalhar com a serra. Mas quantas árvores abate por dia a vossa equipa? Umas trinta. E quanto ganha o patrão por cada árvore? Um dinheirão. O que é que o patrão faz para ganhar esse dinheiro? Nada, nada. Mas é ele que ganha. E o machado com que vocês trabalham nem sequer é dele. É vosso, que o compram na cantina por setenta escudos. E a catana é dele? Não, vocês compram-na por cinquenta escudos. Quer dizer, nem os instrumentos com que vocês trabalham pertencem ao patrão. Vocês são obrigados a comprá-los, são descontados do vosso
salário no fim do mês. As árvores são do patrão? Não. São vossas, são nossas, porque estão na terra angolana. Os machados e as catanas são do patrão? Não, são vossos. O suor do trabalho é do patrão? Não, é vosso, pois são vocês que trabalham. Então, como é que ele ganha muitos contos por dia e a vocês dá vinte escudos? Com que direito? Isso é exploração colonialista. O que trabalha está a arranjar riqueza para o estrangeiro, que não trabalha. O patrão tem a força do lado dele, tem o exército, a polícia, a administração. É com essa força que ele vos obriga a trabalhar, para ele enriquecer. Fizemos bem ou não em destruir o buldozer?
— Fizeram bem – responderam os trabalhadores.
— E esta serra mecânica, a quem é que ela pertence verdadeiramente? O patrão
comprou-a aos alemães, mas onde arranjou dinheiro para comprá-la? Quem explorou ele para comprar esta serra? Respondam.
— Aos trabalhadores – respondeu o jovem António.
— Esta serra pertence-vos, pertence ao povo. Por isso não pode voltar para o colonialista. A gente dava-a a vocês, porque é vossa, mas que vão fazer com ela? Podem vendêla? Podem utilizá-la?
— Não. É melhor levarem a serra – respondeu o trabalhador mais velho, o que tinha as pernas tortas. – Nós não podemos utilizar isso.
— O que é vosso, os machados, as catanas, os canivetes, os relógios, o dinheiro, tudo o que é vosso, vocês vão levar convosco. E vão levar os machados e catanas dos que fugiram, para lhes entregar. Mas o que é do colonialista fica connosco. Os tugas dizem que somos bandidos, que matamos o povo, que roubamos. Fizemo-vos mal? Matámos alguém? Mesmo o branco, podíamos matá-lo, não quisemos. Não somos bandidos. Somos soldados que estamos a lutar para que as árvores que vocês abatem sirvam o povo e não o estrangeiro. Estamos a lutar para que o petróleo de Cabinda sirva para enriquecer o povo e não os americanos. Mas como nós lutamos contra os colonialistas, e como os colonialistas sabem que, com a nossa vitória, eles perderão as riquezas que roubam ao povo, então eles dizem que somos bandidos, para que o povo tenha medo de nós e nos denuncie ao exército. (PEPETELA, 1982, p. 20-21)
Ainda a respeito da imagem do movimento junto à população, a seguinte passagem do romance apresenta a preocupação de alguns comandantes do MPLA, após uma emboscada bem sucedida, em chamar o povo pra junto de si inclusive citando de modo crítico outros movimentos.
— Foi pena o tuga ter escapado – disse o Das Operações.
— Que íamos fazer? Disparar sobre ele e matá-lo, como faz a UPA(2)? É um civil. Tinha
uma tal cara de medo! Não devemos mostrar coragem assassinando civis, mesmo que colonialistas... Tentamos apanhá-lo vivo, mas fugiu. Assim até foi melhor! Que íamos fazer dele? Libertá-lo como aos outros? Haveria uma revolta dos guerrilheiros. Levá-lo para o Congo? Com que pretexto?
— Acho que fizeste bem – disse o Comissário. – Não devemos ir contra a população
civil, embora ela seja hostil. Para quê dar argumentos ao Governo? (PEPETELA, 1982, p. 19)
Outro aspecto importante no que concerne à luta de libertação diz respeito aos problemas na organização interna do movimento armado, algo bastante explorado pelo autor na narrativa. A tropa sofria com problemas no abastecimento e na chegada de novos guerrilheiros, como pode-se observar no trecho a seguir, onde a insatisfação dos soldados com a direção local situada na cidade de Dolisie aumentava devido à falta de envio de provisões.
A comida acabara, mesmo a presa caçada pelo Chefe de Operações. Os homens iam
cada vez mais longe apanhar comunas, pois as árvores que estavam perto da Base já se tinham esgotado. Era preciso marchar duas horas para se chegar ao sítio virgem onde havia ainda frutos. Iam aos grupos de três e enchiam os sacadores. As comunas eram repartidas de igual modo por todos. Havia vários guerrilheiros com diarreia, causada pelo óleo do fruto. Ekuikui saía ainda de noite e voltava à noite, procurando caça. Nada se encontrava. Ekuikui emagrecia a olhos vistos, com o esforço não compensado, mas partia teimosamente no dia seguinte.
Há quatro dias que o Chefe de Operações partira. Tinha enviado logo um mensageiro,
avisando que a comida seguiria breve. Mas os dias passavam e o reabastecimento não chegava. Podia-se dizer que havia uma semana não se alimentavam devidamente. As comunas eram nutritivas, mas não tiravam a fome, pois estavam habituados à mandioca, que enche o estômago sem alimentar. A sensação de fome aumentava o isolamento. (PEPETELA, 1982, p. 83)
O marxismo também aparece com destaque na obra, sobretudo por se tratar de uma das principais, senão a maior, influência ideológica na concepção revolucionária do MPLA. Na trama, o Comandante Sem Medo possui muita experiência nas frentes de batalha e ao mesmo tempo uma consistente formação teórica. Ele se depara com um guerrilheiro (Mundo Novo) de formação marxista, que também estudou na Europa, mas diferentemente do comandante, se mostra demasiado ortodoxo em sua visão a respeito da luta de libertação. O fragmento abaixo mostra brevemente o pensamento político-ideológico de Mundo Novo, numa de suas narrações, avaliando o comportamento do comandante.
Sem Medo é um desinteressado, a terceira camisa que tinha ofereceu-a ao guia, que
acabou por fugir com ela, entregando-se aos tugas(3).
Se diz que é interesseiro, isso é vaidade. É vaidade de mostrar o que muitos escondem, é uma afirmação de personalidade. Claro que é uma afirmação exagerada, extremista, defeito da sua mentalidade pequeno-burguesa.
Como se fosse possível fazer-se uma Revolução só com homens interesseiros, egoístas! Eu não sou egoísta, o marxismo-leninismo mostrou-me que o homem como indivíduo não é nada, só as massas constroem a História. Se fosse egoísta, agora estaria na Europa, como tantos outros, trabalhando e ganhando bem. Porque vim lutar? Porque sou desinteressado. Os operários e os camponeses são desinteressados, são a vanguarda do povo, vanguarda para, que não transporta com ela o pecado original da burguesia de que os intelectuais só muito dificilmente se podem libertar. Eu libertei-me, graças ao marxismo. (PEPETELA, 1982, p. 50)
Sugestão de atividade
A sequência abaixo sugere a aplicação de uma atividade sobre o tema das lutas de
libertação ao longo de três encontros com a turma:
1º)
º Aula expositiva e dialogada sobre a luta anticolonial em Angola, abordando o contexto
geral do processo de descolonização dos países africanos, a correlação de forças dos
movimentos locais de contestação e a geopolítica mundial do pós-Segunda Guerra e da
Guerra Fria, e a atuação do MPLA nesse processo;
º solicitar aos alunos, ao final desse primeiro encontro, a leitura de capítulos do romance Mayombe, dividindo a turma em 5 (cinco) equipes, com cada grupo ficando ficando responsável pela leitura de um capítulo.
2º)
º Iniciar este segundo encontro falando sobre Pepetela e sua atuação no MPLA, além
do contexto de elaboração do romance Mayombe;
º debater com os estudantes as possíveis dúvidas sobre a leitura dos capítulos;
º pedir às equipes que tragam no próximo encontro um texto resumindo suas
impressões a respeito da luta de libertação suscitadas pela leitura do romance e de
toda a discussão realizada até o momento. O texto deve ser entregue escrito e
socializado com toda a turma.
3º)
º entrega dos textos e socialização das produções dos grupos a partir de perguntas
feitas pelo professor.
Notas
(1) Atalho, trilha.
(2) União das Populações de Angola. Antiga denominação da FNLA, um dos três destacados movimentos nacionalistas de luta pela independência no país.
(3) Portugueses
Referências
PEPETELA. Mayombe. São Paulo: Ática, 1982.